Diogo Berni é comentarista de cinema
Diogo Berni , Salvador |
27/01/2021 às 11:14
Rosa Tirana
Foto: DIV
Vander, de Barbara Carmo, BA/2020. Quando escrevo que o filme é a Barbara e não dirigido por ela, é porque existe um grau de pertencimento, ou seja, o filme diz respeito, e mais: fala quem ela é, e porque ela é assim: triste, e com razão.
Existe uma única tomada no curta-metragem: a foto 3X4 do pai, Vander. No fundo tem-se a narração da Barbara dizendo quem ele é, alias quem ele foi e porque foi. Vander era alcoólatra, tomava remédio para bipolaridade, era preto, e era constantemente abordado pela polícia.
Sim , hoje Vander está morto, por uma dessas abordagens policiais das quais sofrera a vida toda. Vander sumiu antes de morrer, verdade, mas mais verdade ainda é que Vander já se encontrava ausente da sua filha Barbara já fazia tempo devido ao álcool e a problemas mentais.
Vander fez porque é gostoso fazer; Vander não mediu as consequências porque na hora a régua que conta é outra; Vander, mesmo se tivesse consciência, faria igual porque pessoas interessantes desobedecem a regras, e a regra de um doente mental não poder fazer filho é tremendamente estapafúrdia.
Barbara, na verdade, deveria agradecer por ser filha de uma pessoa tão especial como Vander, e sente orgulho disso, senão não faria um documentário. Mas é nítida também a dor que a Barbara sente em ter nascido sem pai, todavia esquece-se que o esforço que Vander fez para sair do lugar comum, e ser ‘normal’, para então encaixar-se como um homem que acrescenta a sociedade, pois favorece o número de natalidades.
Barbara hoje parece bem resolvida, e também ficamos por perceber tudo isso.
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Rosa Tirana, dirigido por Rogério Sagui, BA/2020. Rodada em Poções, agreste baiano, não podemos cravar que SE trata de uma obra experimental, até mesmo porque existe uma estória a ser contada; contudo a trama de uma menina fugir de casa por maus tratos pouco fica de lembrança no final do longa.
O que se registra de mais forte é o caminho, e não o fim. Ou seja: as pessoas que a menina encontra no decorrer no “sair de casa”. De inicio temos o mago José Dumont , interpretando um típico ceguinho poeta de interior, e metaforicamente tal persona simboliza a cegueira da humanidade sobre o seu próprio ato de existir, fazendo que a própria natureza árida da terra nos dê uma “força” de nos interarmos mais ainda pra baixo.
Todavia a fotografia e a trilha sonora é absurdamente bela, e nos eleva, e tira-nos da aspereza de clima e realidade tão hostis: a fome. Mas do que um roteiro redondo, o filme entrega algo maior: a esperança de continuar acreditando no homem, apesar dos pesares, e isto se faz , ou se concretiza, apenas por um único caminho, que é a poesia.
Ou seja: a capacidade humanística de criar realidades em cima de uma realidade física estabelecida e bem pisada, para então evoluir-se e se tornar maior que o problema real. Podemos afirmar que trata-se de uma obra fílmica extremamente sensorial, onde sentimos cada dor e cada gesto de grandeza dos personagens, sejam estes apenas cantarolando uma música ou poesia, ou a da própria protagonista mirim.
Todas as Melodias, de Marcus Abujamra, SP/2020.
Dois artistas fazem parte do meu histórico de vida; Jorge Amado e Luis Melodia. Com Jorge Amado era apelidado por “meu alemãozinho” e me ninhado todo final de tarde, na casa da Rua Alagoinhas, já que éramos vizinhos de frente. Com Melodia me lembro de cada instante que passava com ele na praia dos artistas, na Boca do Rio. Ficava vendo aquele monte de artistas nos anos 1980, falando até a boca não aguentar mais, e me perguntava: como eles tem tanta saliva?
Quando ficava olhando pra aquela figura de cabelos longos e corpo magro, ele sentia meu olhar e ria. Seu riso pra mim não era nada de pacificador; começava a ficar agitado e logo pegava minha prancha de isopor e me picava pro mar. Deve ser o poder dos poetas, aquele instante em que era “carcomido” pelas íris de Melodia, que pareciam duas brasas poderosas!
Entretanto uma ocasião em especial fez-me ver o poder da superioridade humana de uma pessoa em relação à outra. É o seguinte: Melodia começou a paquerar a minha mãe, e o meu pai ficou totalmente descontrolado e foi pro embate da situação. Melodia não se apequenou: manteve postura ereta e olhos poderosos em direção a meu pai; resultado: saiu por cima, porque na verdade quem estava sendo paquerado era ele, então meu pai não tinha razão alguma pra reclamar de nada.
E Melodia, vendo que estavam dando mole pra ele, foi pra cima, sem querer saber se tinha ou não marido. Quando viu que com aquele ele não podia, meu pai abaixou a cabeça reconhecendo a vitória de um ser humano mais evoluído que ele.
Quando se é criança, situações como essas jamais ficam esquecidas. Este pequeno relato serve, também, para descrever o que senti assistindo a cinebiografia deste grande poeta brasileiro. Visceral, assim foi Melodia, e assim está neste estupendo documentário visto na 24 Mostra de Cinema de Tiradentes.
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5 Fitas, curta-metragem de Heraldo de Deus e Vilma Martins, BA/2020; concorrendo na 24 Mostra de Cinema de Tiradentes – 2021, abrindo o calendário brasileiro dos festivais de cinema.
A simplicidade é a maior, ou melhor, é a coisa mais difícil em uma obra fílmica. Saber colocar a câmera naquele instante de movimento brusco , ou saber achar o plano sequência correto, que imprima os sentimentos mais inabitáveis dos personagens , é o que faz a diferença entre um filme simples há um filme simplista.
No filme simples, este é tão deveras simples que achamos, com certa facilidade, escreva-se de passagem, os conceitos profundo deste tipo de gênero cinematográfico. Filmes simples tendem a serem filosóficos por focarem em poucos temas e por isso expandi-los. Já os filmes simplistas são aqueles que não têm profundidade filosófica, como os filmes simples, e por isso não acrescentam em nada após assisti-los.
O curta de Heraldo é um típico exemplar de filme simples, e por isso filosófico. O enredo se faz na fuga de dois garotos para a lavagem do Bonfim. Percebemos um roteiro bem trabalhado, e também bem assimilado pelos atores mirins.
A narrativa flui e os garotos vão bem sob planos mais fechados: a festividade ao fundo os ajuda neste ambiente de filmar em festa popular, de maneira que os diálogos , ou ainda o barulho da festa em si, faz do curta ao mesmo tempo com toques filosóficos, como também carrega um ritmo bem norteado, acompanhado pelos tambores .
O ato da coragem de dois garotos sumirem de suas casas faz do curta ter nuances de rebeldia, de confrontar o legalmente estabelecido, no caso os seus pais, além da nuance filosófica, já citada. Memórias de infância tendem a ficar em nossas mentes quando crescemos, pelo fato de quando se é criança, tudo o que passamos e sentimentos são de maneira mais visceral, então natural que memórias infantis seja o início de jornada para diretores, e no caso do Heraldo, que já é um baita ator, é perceptível que este deslocamento de funções, ou até mesmo o acúmulo de funções no set, o faça bem e a Vilma também.