Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO: EU, MEU PAI, MEU AVÔ E OS SABERES DE CADA UM

São três gerações que enfrentaram momentos diferentes na vida cada qual com seu saber
Tasso Franco , da redação em Salvador | 04/11/2020 às 09:42
Francolino e a mãe Zildoca
Foto: Seramov
  O jornalista Tasso Franco publicou nesta quarta-feira, 4, a 31ª crônica do seu livro "No Meu Tempo de Menino, o último apito do trem" (1945/1957), no aplicativo wattpad, sobre os saberes do neto, do pai e do avô. Leia abaixo e todas as demais no wattpad.

  EU, MEU PAI, MEU AVÕ E SABERES DE CADA UM

      
  Os meninos de hoje são mais sabidos do que os meninos do meu tempo de criança? 

   Não teria uma resposta exata para esta pergunta, pois, cada tempo tem sua sabedoria própria. Daria empate. 

   Diria, no entanto, que os meninos de hoje são mais bem informados do que os meninos de minha época, anos 1940/1950, viventes numa cidade do interior da Bahia que sequer tinha energia elétrica. 

   Pode parecer surreal, mas, a meninada do meu tempo de pirralho, foi criada sem vê televisão, longe da telinha mágica e portátil da TV, e perto da telona do cinema. Um diferencial e tanto. A TV está no mundo, a BBC, desde 1938; e no Brasil, a Tupi, a partir de 8 de setembro de 1950. Em Serrinha, só chegou em meados dos anos 1960. E o cinema, esteve presente desde a década de 1910, ainda cinema mudo.

   O cinema, em tese, nos fornecia informações de costumes e modos do ser e existir das pessoas e famílias noutros centros mais adiantados do que a nossa Serrinha, mas, àquela informação do dia-a-dia da TV, do futebol, da notícia, da medicina e da moda, isso não existia. Tinha um informe Canal 100 no cinema que passava resumos de jogos de futebol do Rio e São Paulo.

   Eventualmente, dava para imitar alguns tipos copiados das telonas, nas festinhas de aniversários e no Carnaval. Mas, no habitual, impossível sair à rua vestido de Zorro ou Tom Mix ou fazer as papagaiadas de Oscarito e Ankito. 

   As botas e chapéus dos cowboys norte-americanos e dos gajos mexicanos, seus adversários em alguns duelos, eram diferentes das botas rolós dos nossos vaqueiros e pais, e dos chapéus de couro e de palha que usávamos.

   Parece estranho aos olhos de hoje, mas, o cinema, em especial o cineteatro, e Serrinha exibia cinema mudo desde 1915 com apresentações de teatro amador locais desde a década de 1920, e essa cultura da sala de cinema, hoje, muito modificada com a TV, a internet, a HBO, a Netflix e outros, foi um grande diferencial para nossa pré-adolescência. 

   Se nos faltou rádio e TV, e agora os smartphones e iphones com acessos ao mundo digital em tempo real, sobrou-nos a telona e ela preenchia todas as expectativas da época.

   Uma coisa é, hoje, viver sem a TV, já que esses meio de comunicação opera com plena captações de imagens e é barato e popular; e outra coisa era viver sem esses meio porque já existia na Inglaterra, França, EUA e SP, mas não havia transmissões em Serrinha. Daí que não fazia a menor falta para nós.

   Outro dia fui ao cinema no Barra, à tarde, 'véi' adora cinema nesse horário, e vi um garoto de 10 anos, aproximadamente, com um iphone captando informações, falando com a família, ouvindo música e jogando uma série sobre 'birds'. 

   Na minha época de menino a gente ia pro cinema, Cine Comercial e depois no Cine Astro, e o máximo que podíamos nos comunicar era com o bilheteiro, o pipoqueiro e o baleiro. 

   Rádio foi um meio que não existiu em nossas vidas ainda que alguns adultos ouvissem programas na Rádio Sociedade da Bahia, fundada em 1924.

   A questão é que quase ninguém possuía um aparelho de rádio e, no meu tempo de menino, a coqueluche eram os serviços de alto falantes, primeiro "O Comercial de Serrinha", que meu pai era sócio, a partir de 1948 quando eu tinha 3 anos de idade. Depois, "A Voz do Sertão" (1950) e "A Voz da Liberdade", do padre Demócrito, também de 1950, com bocas de alto-falantes instaladas na Praça Luís Nogueira e no corredor da Manoel Novaes e da Agenor de Freitas. 

   A gente não dava importância a esse cenário. Só interessava aos adultos. Tinha até aglomerações em determinadas bocas para ouvir comentários políticos e a Ave Maria. Para nós, isso não tinha a menor relevância. Meu pai escrevia comentários lidos por Dodô de Zé de Maninha.

   Na minha época de criança as mudanças eram lentas na sociedade. A máxima de que conhecimentos novos puxam novos comportamentos demoravam para nós. 

   Eu, nascido em 1945, meu pai, que nasceu em 1910, e meu avô paterno que nasceu em 1878, somos todos filhos da era industrial em diferentes estágios. Meu avô viu chegar a estrada de ferro em Serrinha, no final do século XIX, o primor de tecnologia dos primórdios da era industrial; meu pai e eu assistimos evolução da "Chemin de Fer", da Maria Fumaça, máquinas movidas a lenha e caldeiras para máquinas movidas a óleo diesel.

   Ainda assim, nossa sociedade, nos três estágios (1880/1910/1945) era patriarcal e vivia ainda, uma parte majoritária, na Era da Agricultura. Não produzíamos nem enxadas industriais. Só ferramentas artesanais em oficinas movidas a brasa de fole.

   Fomos, portanto, contempladores da era industrial e quando eu nasci (final da II Guerra Mundial) os EUA lançaram duas bombas atômicas para terminar a guerra contra o Japão, primórdios, portanto, da Era Industrial Atômica. 

   O significado para meu avô e meu pai dessas bombas, eles que já eram adultos nesta época (1945), foi nenhum. Se não tínhamos tecnologia para fazer enxadas, meu avô arriscou-se a produzir vinho de jurubeba e meu pai foi mais ousado adquirindo uma tipografia, que data da década de 1920, pondo Serrinha em plena era industrial primitiva, o que pensar de engenhos atômicos!

   Relato isso para que vocês possam entender os saberes: meu avô criança, embora nascido na era industrial, vivia na era da Agricultura com pouco saber e estudo; meu pai criança vivia nas duas eras, a agrícola e a industrial, e a Filarmônica 30 de Junho com seus bandolins e clarinetes, foi sua escola do saber extra classe, enquanto a escola de Milú de Laboré, a primeira da Serra, ensinava o saber fundamental; e eu só experimentei a era industrial, com a 30, a escola municipal e o ginásio estadual.

   As mudanças de comportamento de forma mais intensa, de fato, só começaram a acontecer na sociedade nos anos 1960 quando eu já era rapaz e chegaram a Serrinha a luz elétrica, o asfalto, a rádio e novos anseios, o que hoje se chama de algoritmo, um conjunto de métodos, de ideias, de desejos. 

   Até meu pai, poucos filhos de Serrinha desejavam sair da cidade, do município, e seguiam as profissões dos seus antepassados com raras exceções. A partir de mim, das novas informações, das novas tecnologias que a gente não tinha acesso, mas sabia da sua existência, Serrinha foi ficando pequena para nossos anseios e muitos de nós fomos embora para Feira, Salvador, Rio, São Paulo. Ainda assim, eram raríssimos aqueles que iam para o exterior, estudar e viver por lá.

   Hoje, com a globalização, a internet, o algoritmo da criança de Serrinha é muito parecido com o de outros centros no Brasil, ela já trabalha com anseios externos, com vivências externas, e a terra, o município, e Serrinha deixa de ser uma referência, salvo familiar e histórica. 

   Então, eu, meu pai e meu avô tivemos algoritmos idênticos na infância em 1945, 1910 e 1880, respectivamente. 

   Meu pai e meu avô seguiram com os mesmos algoritmos (anseios e mudanças) quando adultos, em 1910 (meu avô com 30 anos) e 1945 (meu pai com 35 anos de idade) e nunca se ausentaram de Serrinha, nunca pensaram em deixar Serrinha e morreram na cidade, meu avô em 1964; e meu pai em 1994. 

   Meu avô não chegou sequer a conhecer Salvador; e meu pai só ia a Salvador a negócios ou ao médico. Chegou a conhecer o Rio levado por meu irmão. 

   Meu algoritmo levou-me a deixar Serrinha em 1963 em busca de conhecimentos e oportunidades de trabalho. A velocidade do mundo já era outra e fui praticamente forçado pelos estímulos do meu cérebro a fazer isso. Formei-me em jornalismo e era impossível sobreviver em Serrinha nesta profissão onde estou desde os anos 1960. 

   Em síntese: cada criança em sua época tem seus saberes e nenhum é mais valorativo do que o outro. O tempo, sim, é diferente. As mudanças dos costumes, das crenças, dos valores, dos anseios são os condutores dos processos em cada época.