Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO A GENTE NÃO SOFRIA BULLYNG NEM TINHA PSICÓLOGA

Toda criança tinha um apelido e as pirraças eram frequentes entre eles, mas, ninguém teve graves problemas por isso
Tasso Franco , da redação em Salvador | 14/10/2020 às 08:52
Eu (Zôio de Gude, sentado) com meus irmãos Bráulio e Celeste, em 1949
Foto: Arquivo do autor
   O jornalista Tasso Franco publicou nesta quarta-feira, 14, a 24 crônica do seu livro "No Meu Tempo de Menino, o último apito do trem" (1945/1957, Serrinha, Bahia) falando de bullyng termo que desconheceram quando criançass. Leia crônica abaixo e todas as demais no aplicativo wattpad.

   A GENTE NÃO SOFRIA ‘BULLYNG’ NEM TINHA PSICÓLOGA
 
   A palavra 'bullying', em inglês, literalmente significa assédio moral. É a prática de atos violentos, intencionais e repetidos, brincadeiras maldosas contra uma pessoa indefesa, que podem causar danos físicos e psicológicos às vítimas. O termo surgiu a partir do inglês 'bully​', palavra que significa tirano, brigão ou valentão, na tradução para o português. 

  Nos últimos tempos temos ouvido muito falar que uma criança sofreu "bullying" na escola, que uma jovem ficou atormentada por causa de "bullyng" na academia que malhava, que um jovem ficou temeroso diante de "bullyng" só porque era chamado de ‘boneca’ e assim por diante. Estatísticas recentes apontam que 1 em cada 10 alunos no Brasil são vítimas de "bullying".

   Toda semana, na mídia, vemos isso. Inclusive, uma criança por ter sido chamada com frequência de baleia, pelo fato de ser gorda, abandonou a escola e até teria tentado o suicídio.

   Então, lembrei-me do meu tempo de menino, em Serrinha, que a gente sofria esse tal de "bullying", mas, ninguém ficou deprimido ou chateado - pelo menos que eu saiba - nem abandonou a escola, nem muito menos procurou um psicólogo. Eu mesmo era chamado por meus colegas infantis de "Zôio de Gude" (olhos de gude). 

   Imagina! Psicólogo em Serrinha naquela época sequer existia. Tínhamos somente dois médicos clínicos na cidade que tratavam das doenças físicas e visíveis - mal estar, sarampo, ferimentos, febre, etc - mas, nada da cabeça, as possíveis doenças mentais e abalos psicológicos. Nossos doidinhos que andavam pelas ruas eram mansos.

   A gente sabia da existência de outras profissões: comerciante, caixeiro (comerciário), sapateiro, advogado, professor, carpinteiro etc. Agora, psicólogo ou mesmo um psiquiatra para algo mais profundo investigativo de mente, não existiam. Nós, as crianças, e as famílias.

   Daí que encarávamos o tal do "bullyng" numa boa - desconhecíamos completamente essa palavra e nenhuma criança em Serrinha falava inglês.

   Cada um de nós possuía um apelido (salvo exceções) e alguns colegas a gente pirraçava mesmo. Tinha uma menina em minha turma da Escola Agripino Barbosa que a gente chamava de 'girafa' por ser grande e desengonçada. Ele ficava furiosa. E só. E tinha uma garota no Largo da Usina, onde eu morava, que puxava de uma perna e a gente arreliava chamando-a de "capenga", "capenguinha".

   Que me lembre, o filho de Sêo Titi Magalhães, nosso alfaiate mor, chamava-se Antônio Carlos Magalhães. Nós, no entanto, só o chamávamos de "Boi", por ser gorducho e lento. Nosso ACM não tava nem aí. Quando adulto teve uma Casa Lotérica, deitava-se no muro da Telebahia da Praça Miguel Carneiro para descansar às tardes e morreu sendo chamado de "Boi". Nunca se zangou. Incorporou.

   Tínhamos Nelsinho Meneses, que era o "pato preto"; José de Dona Todinha, que era "Zé Potó"; Valdomiro de Nozinho do Lamarão, que era "Miro Pezão"; José Raimundo das Mercês, era o "Tó"; e seu irmão Belmiro, o "Perna de Cangalha"; Adelson Nogueira era "Espirro" (chamo-o ainda hoje assim), Josenito Queiroz, o "Tabaréu"; Jeferrson filho de Sêo Faustino era o "Carrapato". Esse se retava com esse apelido. Tinha dois vizinhos de "Boi" que eram "Dem" e "Fio". Nunca soube seus nomes verdadeiros. "Fio", como o apelido narra era magrinho, um fio. O melhor badogueiro da rua era "Bacalhau"; melhor meia esquerda dos babas, "Boquinha".

    Curioso é que muitos de nós levávamos o nome do pai ou da mãe para ser identificado em alguns locais: no comércio, na escola, no cinema, etc. Prática que, em parte, persiste até os dias atuais. Ninguém falava o nome completo das pessoas, salvo as famílias dos seus. Eu mesmo, Tasso Paes Franco, era conhecido como o filho de Bráulio da Livraria. Meu pai tinha uma tipografia e livraria, mas, como muita gente não sabia o que era tipografia, valia filho do homem da livraria. 

    Serrador, meu colega, era o filho de Demá do Querosene (Serrador de Demá); Celeste Pedroza era a filha de dona Diva do Cartório (Celeste de Diva); Renatinho, filho de Renato Nogueira campeão de bilhar; Nilson, filho de Sêo Zé Faustino da loja de tecidos (Nilson de Zé Faustimo); Aninha, filha de Sêo Cipriano dos cereais (Aninha de Cipriano); Dinho, filho de Neco Bilheteiro (Dinho de Neco); Dinha, filha de Maninho da Licurituba (Dinha de Maninho); Cândido, filho de Sêo Juca da Sapataria (Cândido de Juca); e assim por diante.

   Então, não me recordo, pois, de que alguém do meu tempo de menino tenha se chateado com "bullying" e muito menos de alguém que levou uma surra dos pais e ficou com trauma. Ou quem levou ‘bolos’ das palmatórias das escolas e ficou traumatizado para o resto da vida.

   Minha escola primária não tinha mais palmatória. Mas, ainda havia muitas escolas que possuíam esse corretivo "pedagógico" e quando a professora perguntava a um aluno quanto são 2 e 2 e ele respondia 5. A professora além de chamá-lo de 'burro', eventualmente, aplicava dois bolos de palmatória em cada mão para ele aprender. E respondia: 2 mais 2 são 4.

   Falava-se também, o que presenciei, que algumas professoras colocavam alunos de castigo quando erravam as lições virados de costas para a sala. Em alguns casos, de joelhos. E, em casos extremos, o que não presenciei, com joelhos postos sobre grãos de milhos. Na minha escola não havia isso, nem na Agripino; nem na Graciliano de Freitas.

   Os nomes dos meus colegas eram simples, a maioria, copiado das citações bíblicas: José, Maria, Luís, Manoel, Pedro, Joaquim, Ana (existiam muitas Anas porque a padroeira da cidade é Senhora Sant'Anna), Marta, Isabel, João, Nelson. As famílias não colocam o nome de Jesus em ninguém porque seria um pecado. Eventualmente saia um nome fora do roteiro, meu caso, por exemplo, que meu pai colocou Tasso ao ler algo em torno do poeta italiano Torquato Tasso.

   E tinha alguns nomes estranhos criados pelas famílias da união dos nomes dos marido e mulher. Às vezes, saia algo impronunciável e o cartório nem registrava. E havia os nomes compostos mais simples: Ana Maria, Maria Luiza, Martônio (Marta mais Antônio), Laurenyza (Lauro mais Nyanza), Joana (João mais Ana), Josefa (João mais Zefa).

   Ninguém tinha nome de artista de TV e de cinema, muito menos de famosos - astronautas, ativistas, celebridades - como nos dias atuais: Yuri, Daniela, Igor, William, Kennedy, Lenine, etc, até porque as famílias desconheciam essas novidades. No máximo, sabiam os nomes dos cantores e cantoras do Rádio: Emilinha Borba, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves e outros.

  Minha geração, hoje, na faixa dos 70 anos de idade, muito dos quais já partiram para outra esfera espiritual (minha irmã mais velha, Celeste, é convencida que existe vida espiritual noutro local da galáxia) cresceu sem dar a mínima a esse tal de "bullying".