Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO A GENTE TINHA MEDO DE DENTISTA QUE SE PELAVA

Os consultórios eram nas casas dos dentistas, não haviam clinicas e as máquinas eram a pedais
Tasso Franco , da redação em Salvador | 19/09/2020 às 07:33
Dentista era o terror das crainças
Foto: Seramov
    O jornalista Tasso Franco publicou neste sábado a 17ª crônica em seu livro "No Meu Tempo de Menino, o último apito do trem, Serrinha (1945/1957)" sobre o medo que as crianças tinham dos dentistas. Leia abaixo a crônica de hoje e as demais no aplicativo canadense wattpad.
 
   A GENTE TINHA MEDO DE DENTISTA QUE SE PELAVA

 
   Toda criança - assim suponho - tem pavor de dentista. Nos dias atuais nem tanto, porque há consultórios especializados para menores, treinamento dos profissionais voltado para esse tipo de atendimento, novas tecnologias, salas com ar condicionado, toda uma ambientação que favorece a criança no sentido de diminuir esse pavor.

  Agora, no meu tempo de menino, cidade sem energia elétrica, sem água potável, sem clínicas odontológicas, o medo de dentista era atroz.

   Médico, nem tanto. Aquele profissional que vestia um jaleco branco, porque naquela época médico não usava jaleco com gravata, modismo norte-americano que pegou no Brasil, a gente achava médico apenas curioso. 

   Já o dentista, a gente tinha um medo enorme, quer porque dor de dente não é brincadeira, é apavorante, atinge a nuca e a cabeça; quer porque a gente só enxergava no dentista aquele profissional que tinha um alicate estilizado tipo torquez que arrancava os dentes. Às vezes, como nas charges das revistas da época, o dentista colocando o pé na barriga do cliente para servir de alavanca e retirar o dente. 

   As histórias de dentistas eram nessa direção e ainda havia as propagandas dos remédios em que aparecia um homem com o queixo inchado e uma tira de pano amarrada entre o queixo e a cabeça, seguida da propaganda do medicamento: "Para dor de dentes, nada como usar tal produto".

   Em Serrinha, pra piorar a situação, eram poucos os dentistas e todo menino precisava ir a um deles porque a água que a gente bebia não era de boa qualidade, os alimentos eram in-natura ou cozinhados no dia-a-dia porque não havia geladeiras, as comidas quase sempre eram gordurosas fritas ou cozidas com toucinho, e tudo isso prejudicava a dentição. 

   Lá em casa, como em muitas outras da cidade, a água que a gente bebia era a captada das chuvas. Toda casa tinha um beiral de bicas de flandre e quando chovia a água batia nas telhas e era levada por essas bicas até os tanques de cimento. Ia, claro, a água que caia do espaço e os detritos que estavam nas telhas - cocos de passarinhos, cocos de corujões e os ciscos, folhagens, etc - e tudo isso era levado ao tanque de cimento.   

   Dias depois, quando a água 'assentava', como se dizia, meu pai vinha com um balde amarrado numa corda e descia-o bem devagar até a lâmina d'água. Em seguida, emborcava o balde e com calma enchia-o alçando-o para fora do tanque. A água era colocada num filtro ou fervida para a família beber. Essa mesma água era posta num pote para cozinhar os alimentos. Tinha também o tanque do banheiro que armazenava água que, com o tempo, ficava geladíssima para os banhos.

   Ademais, as pastas de dentes e as escovas não eram de boa qualidade. Fio dental, nem pensar. Fluoretação! Não existia. Algumas pessoas, inclusive 'areavam' os dentes mascando fumo de corda ou folhas de velame bem verdinhas.

   Daí que toda criança tinha dor de dentes e quando minha vez chegou, creio que estava com 7 a 8 anos de idade, acordei com uma dor de dentes daquelas de arrepiar os pelos dos braços, pra dizer o menos. Quando fui tomar café da manhã falei pra minha mãe: - Estou morrendo de dor de dentes.

   - Você não está morrendo coisa nenhuma. Vai pra escola assim mesmo. Vou pedir a Bráulio (meu pai) para ir na Farmácia de Sêo Cosme comprar um remédio e quando você voltar da escola usa, disse. 

   Voltei da escola com a dor mais forte ainda, gemendo. Meu pai quando viu a cena disse: - Vou lhe levar é em Dr Palma, no dentista.

   Tremi dos pés à cabeça quando ele falou no nome do doutor dentista. Mas, era melhor do que ficar com aquela dor infernal.

   Depois do almoço, eu só mastigando de um lado da boca e gemendo de dor, por volta das 3 horas da tarde, lá fomos nós para o casarão onde residia doutor Palma e família, na praça Luís Nogueira. 

   A gente sabia de cor e salteado todo mundo que morava nesta praça porque era a vitrine da cidade. Tinha o palacete dos Nogueira onde viviam Sêo Luis e dona Áurea, ao lado ficava a casa de dona Mariá e Sêo Gentil, também dos Nogueira, seguida da casa de Sêo Adauto Santiago onde o velho Santiago, pai de Adauto, sentava numa cadeira à frente da casa para fazer palitinhos, a de Sêo Moacir Bacelar, e depois vinha três casarões, o de Tuta, o de doutor Sandoval, juiz de Direito, e o de doutor Palma. Depois, seguia a casa de doutor Zé Marcelino, que era o advogado da cidade, e o cartório de notas e ofícios das irmãs Zina e Alice Hortélio.

   Quando subi as escadas do casarão de doutor Palma as minhas pernas tremiam mais que vara verde. Meu pai me segurava pela mão.
 
   - Trouxe esse moleque aqui que está com dor de dente desde de manhã - disse ele a Palma.

   - Vamos ver. Bote ele sentado aqui nesta cadeira (a do dentista).

    Sentei-me na cadeira e ouvi: - Abra a boca, meu filho.

   Minha boca parecia travada, colocada com goma de mascar, e abri só pela metade.

   - Abra mais a boca para eu ver esse dente dolorido. 

   Então, pegou com a mão esquerda segurando a abertura da boca e com a direita passou um estilete na ponta do dente. Vi estrelas.

    - Tá doendo. 

   - Demais doutor, tô que não aguento.

   - Vou aplicar uma anestesia que não vai doer nada.

    Pegou um seringaço e meteu a agulha na gengiva. Vi mais estrelas e me espremi todo na cadeira. Em pouco minutos minha boca tava dormente.

   Ele então começou a obturar o dente, com aquela zoada no meu pé do ouvido. Hém...hém...hém cavucando o dente.

   A obturadora era a pedal. Tinha uma polia que acionava o obturardor. O dentista tinha que ter dupla habilidade, com o pé direito pedalando a máquina e com a mão direita obturando o dente. Com a mão esquerda segurava minha cabeça para não me afastar da cadeira. Era uma arte.

   Em poucos instantes ouvi ele dizer: - Pronto. Vou limpar esse buraquinho que fiz e colocar uma massinha branca.

   E, então, ele veio com uma espécie de cimento e tapou o buraquinho do dente.

   - Acabou. Pode levantar da cadeira. Muito bem, você é corajoso, nem chorou.

    Daí segui com meu pai até "O Serrinhense" e meu velho disse: - Descanse um pouco e depois vá pra casa.

   Foi o que fiz e por volta das 5 da tarde já estava em casa, ainda com a boca dormente. Minha mãe me recebeu toda alegre perguntando se o dente ainda estava doendo e eu disse que não, mas, a boca estava dormente. Ela então respondeu: - Daqui pra de noite volta ao normal.

   Dr Palma, de certo modo, fez eu perder o medo de dentista. Eu não o conhecia pessoalmente, mas, seu filho Augusto (Gutinho) era meu colega de baba na praça Luís Nogueira, num campinho que tinha em frente da casa e cartório de dona Diva Pedrosa, onde, hoje, há um parquinho.

   Dr Augusto Palma era um gentelman. Alto, elegante, fala pousada, parecia um europeu. Era casado com Dona Edite e tinha mais duas filhas: Ana (Aninha) e Constança (Tancinha), esta colega de minha irmã Celeste. Tancinha é dentista como o pai, em Salvador, Hoje, suponha que aposentada.

   As famílias tinham mania de colocar diminutivos nos nomes dos filhos. Meus irmãos Bráulio e Laiz eram Braulinho e Laizinha; um compadre de meu pai, Sêo Cícero, tinha Dilzinha e Lourinho; Sêo Renato Nogueira, tinha o Renatinho; no meu time de futebol, o Ipiranga de Biêta, tinha Toinho, Mirinho e Manezinho; dona Nyanza do Cartório e Lauro Murta tinha uma filha que era a Nizinha; Sêo Demá tinha uma mocinha que era a Teodorinha; Sêo Nelson do Lamarão e Sêo Nelson Menezes tinham Nelsinhos; eram inhos e inhas que não acabavam mais.

   No final dos anos 1950, Dr. Palma foi embora com a família para Salvador, os meninos estavam crescidos e precisavam estudar em faculdades e eu fui ficando menino-grande, mas, óbvio, as dores de dentes seguiram comigo e meu segundo dentista foi Dr Arnaldo Cohin, que tinha consultório na Macário Ferreira, nas dependências de sua casa.

   Dr Arnaldo era o contrário de Dr Palma. Agitado, elétrico, animado, quando meu pai me levou ao dito e sentei na cadeira dizendo que o dente estava doendo ele mandou eu abrir a boca e foi logo dizendo: - Né homem não seu porrinha. 

   - Eu sou sim senhor...

   - O senhor tá no céu. Pare de choramingar e abra essa boca.

    Era outro estilo. Nessa época, início dos anos 60, eu já usando calça comprida, já havia energia em Serrinha e os consultórios melhoraram.

   O que tinha Dr Arnaldo de estabanado, tinha sua esposa, dona Ligia, de calma, elegante, uma lady.

    Bem, depois, também fui embora para Salvador e ainda rapaz mantive consultas com Dr Arnaldo, nas idas e vindas à capital, de férias. 

   No final dos anos 60, já definitivo na capital e trabalhando na imprensa, meus dentistas foram Dr Zé Carlos e Dr Zé Cordeiro, no Bráulio Xavier, e depois que fui para o Chame-Chame, nos anos 1970, Dr Cantidiano, com quem estou até hoje, no Victória Center.
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  **** Se vocês gostaram comentem e falem dos seus dentistas quando crianças.