Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO, OS SÁBADOS OS CARROS DE BOIS E OS TABARÉUS

A movimentação da feira começava às 4 horas da manhã quando as carroças traziam os cortes de bois e carneiros do Bairro do Matadouro para o Mercado
Tasso Franco , da redação em Salvador | 02/09/2020 às 07:45
Carro de bois em frente ao chalé do meu avô
Foto: Museu Pró Memória
  O jornalista Tasso Franco publicou nesta quarta-feira, 2, no wattpad a 12ª crônica do seu livro No Meu Tempo de Menino, o último apito do trem, Serrinha (1945/1957) sobre a feira dos dias de sábados. Leia abaixo e todas as demais no wattpad.

  OS SÁBADOS E OS CARROS DE BOIS E A PRESENÇA DOS TABARÉUS

 

  No meu tempo de menino, a gente contava nos dedos das mãos o dia que chegava o sábado. Era o momento da feira livre quando a cidade se modificava e os 'tabaréus' vinham das roças para dar um tom diferenciado.

   Havia, nessa época, cinco grandes distritos, todos depois emancipados na década de 1960, salvo Barrocas que foi emancipado na década de 1990: o Lamarão, a Pedra (Teofilândia, em homenagem a Teófilo Oliveira, irmão da deputada Nanu Oliveira), o Raso (Araci), a Manga (Biritinga) e Barrocas além dos povoados Saco do Correios, Chapada, Bela Vista, Retiro e Subaé. Até 1970, Serrinha tinha 16.703 habitantes na sede e 30.469 na zona rural.

   Os locais distritais maiores tinham suas próprias feiras livres e os povoados não as tinham e os roceiros, ou 'tabaréus', vinham à cidade no sábado para a feira de Serrinha abastecer suas famílias de alguns produtos - tecidos, querosene, remédios, açúcar, café, etc - e vender o que produziam - frutas, verduras, beijus de tapioca, carnes, etc - e animais vivos - perus, galinhas, carneiros e outros.

   O termo 'tabaréu' era pejorativo, mas, não agressivo. Ninguém falava em produtor rural (grandes ou pequenos) e poucos eram os fazendeiros. A maioria era roceiro, de roça. Termo que vem da época da Colônia quando escravos roçavam as terras dos engenhos de cana-de-açúcar para o plantio de sub existência. Só os mais abastados em terras e gados, eram considerados fazendeiros. O mais famoso e rico era João Barbosa que chegou a ser prefeito e construiu o Mercado Municipal. Outro famoso, em terras, mulheres e valentia era o coronel José Carneiro da Silva Filho, o Nenénzinho.

   A feira livre para nós crianças era um universo de beleza, de curiosidade e movimento. Nós, embora vivêssemos na sede do município, Serrinha era tão pequena que, de qualquer lado que se olhava via-se a zona rural. Éramos um misto de citadinos e roceiros.

  Minha casa, por exemplo, o chalé do meu avô tinha um fundo que alcançava o Tanque das Abóboras na linha Norte e a Estrada Transnordestina na linha Oeste, até onde hoje é o ponto do Araci. Era um fundo-sitio onde morava meu avô Jovino e sua Roza com seu pequeno criatório de vacas e carneiros. 

   Ou seja, a maioria dos ‘serrinhas’ era urbano-rural.

   Ainda assim, havia uma diferença enorme diante dos 'tabaréus', os quais, normalmente eram retraídos - as crianças então quase não se comunicavam - usavam chapéus de palha ou de couro, borzeguins (botas) e jalecos; e as mulheres vestidos de chitas. Era um universo paralelo e a gente ficava admirado com aquilo.

   Naquela época não havia veículos - salvo alguns jeeps willys - e para conduzir os roceiros à cidade e quase todos vinham ou a pé, das roças mais próximas; ou montados em cavalos, jegues e burros. As famílias e grupos usavam carros-de-bois. 

   Na minha praça existia um estacionamento de animais, da família de Sêo Neco Bilheteiro, onde hoje se situa aquela rua ao lado do Chama Supermercado. 

   Na área do Chama eram as casas da família de Sêo Neco e suas irmãs e havia um cercado (onde é a rua) onde os cavaleiros chegam com seus animais e pagavam um estacionamento para deixá-los até que fossem a feira. 

   Os animais eram amarrados em estacas colocadas em pontos estratégicos do estacionamento e o cavaleiro retirava a capa da sela do animal e recebia um tique que era colocado nela. O outro tíquete era dado ao dono do animal, com o aviso de que não poderia perder.

   O cavaleiro pagava uma modesta quantia e no retorno da feira pegava a capa da sela e levava seu animal e o que havia comprado na feira, em alforjes, ou num animal de carga. Havia vários estacionamentos deste na cidade.

    Aos sábados eu acordava bem cedo, como se dizia, com o cantar do galo. Aí por volta das 6h30min/7h descia o Largo da Usina e ia tomar o mingau de milho de dona Maria de Thiome, a qual tinha seu tabuleiro com bolos e as panelas de mingaus - milho e tapioca - ao lado da primeira porta do Mercado Municipal. 

   Depois de tomar o mingau ia percorrer a feira para astuciar. As mercadorias do Largo da Federação eram as que mais atraiam a gente porque tinham as panelas de barro, os carrinhos de madeira, os fifós, o artesanato das roceiras, as esteiras, os aiós e outros. Ainda tinha o glamour de passar pelo Beco da Lama apreciando as vitrines das lojas.

   Em cada época do ano, as feiras tinham as frutas e verduras das temporadas. No início do ano, verão, havia mangas, umbus e melancias. No meio do ano, época junina, era farta em laranjas, amendoins, cocos, mangabas. Em setembro, temporadas das flores, de cana e carambola.

   No mais, os tradicionais produtos das roças - feijão, farinha, milho, carnes, etc - eram os mesmos de sempre. A feira só alcançava três espaços: parte da Praça Luís Nogueira - do coreto à direita da Igreja Matriz de Senhora Sant'Anna - a Araújo Pinho (rua do Mercado) e o Largo da Federação. 

   O ponto central, de burburinho, era o Mercado Municipal onde havia de tudo um pouco, desde os chouriços preparados e vendidos pela família Novaes, as carnes (verdes) e os feijões da época. No mercado tinha também lojinhas de artesanato em couro.

   Faziam ponto nas portas do mercado um mendigo chamado Rodrigo, o “Bufa de Véio”; e um ceguinho que se chamava Manoel, o qual passava a manhã toda repetindo a mesma frase: "Me dê uma esmolinha pelo amor de Deus". A gente arreliava Rodrigo, chamando-o de “Bufa de Veio” e ela respondia: "É sua m..seu fdp" e rodava um pequeno cacete para tentar nos atingir. 

   Agora, medo mesmo a gente tinha era de Gaúcho, um doido manso que ficava contando 'dinheiro' de papel (umas folhas de papel em forma de dinheiro), ele que era irmão de Sêo Abdon Costa e morava no mesmo largo de minha família. Gaúcho era altão, enfezado, mas, nunca agrediu ninguém.

   Nos dias da feira armavam-se barracas de vendas de roupas populares na praça Luís Nogueira e os comerciantes de tecidos não gostavam porque tiravam seus clientes. Creio que foram essas barracas que primeiro venderam confecções em Serrinha. E a boutique “Brasília” de Joaquim Aurélio, no Edf Nogueira. As lojas de tecidos vendiam os panos em metro.  

   Meu avô Jovino adorava tomar umas e outras numa bodega que havia próximo a venda de Sêo Manoel Carneiro, de primeiras necessidades – cereais, sabão, etc. A venda ficava ao lado da loja de cereais de Sêo Emilio Ferreira. 

   Enchia o bocapio de açúcar, café, sal, chouriço, sabão, etc - e subia o largo da Usina 'baleado, 'comendo água', com um charuto peba na boca. Tropeçava, mas, não caía. E, também não perdia o mocó com a feira; nem deixava o charuto acesso cair da boca. 

   Vez por outra parava e colocava o bocapio no chão para dar uma tragada mais forte no fumo e derrubar a cinza, além de dar uma cusparada. Fazia parte do ritual.

   A movimentação da feira começava às 4 horas da manhã quando as carroças traziam os cortes de bois e carneiros do Bairro do Matadouro para o Mercado. Meu pai gostava muito de carneiro cozido (ensopado). E, aos sábados, era um dos pratos prediletos lá em casa. 

   Quando era por volta das 15h/16h, os tabaréus levantavam seus panos onde colocavam as mercadorias nas ruas e 17h a feira já havia terminado. Só ficam os biriteiros no Mercado Municipal e adjacências e as pessoas da cidade. E os varredores da Prefeitura,

    Os 'tabaréus' pegavam seus carros de bois, seus jegues e burros e voltavam para suas roças. Havia, ainda, o hábito de alguns deles, especialmente as mulheres andarem de pés descalços para não gastar os sapatos, na ida e volta às roças. Só calçavam as sandálias e ossapatos na cidade.

   O carro-de-bois da roça de meu pai era 'pilotado' por Pedro Carreiro e à tardinha eu ficava no portão de ferro do Chalé olhando gritar para a junta de bois mestra. - Vamo, êh! boi, puxa 'Pintado', aê "Branquinho' e lá se ia para a roça. E a roda de madeira do carro com cobertura de ferro, começava a girar e a gemer.