Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO A FESTA DE SANT'ANNA E O LEILOEIRO NELINHO

Evento que acontecia com novenário na matriz e leilões na praça para construir a igreja nova, hoje, catedral basilica
Tasso Franco , da redação em Salvador | 19/08/2020 às 08:04
José Ramos da Silva, o Nelinho, e seu jeep Willys
Foto: Arquivo do autor
  O jornalista Tasso Franco publicou nesta quarta-feira, 19, no wattpad a 8ª crônica do seu livro "No Meu Tempo de Menino" - o último apito do Trem, Serrinha (1945/1957) mostrando como era a festa para Senhora Sant'Anna e os leilões com Nelinho. Leia a crônica abaixo e as demais no wattpad.

A FESTA DE SANT’ANNA E OS LEILÕES DE NELINHO

   Serrinha tem ligação com Senhora Sant'Anna desde os primórdios quando a família de Bernardo da Silva – fundador do povoado - ergueu uma capela na única praça que existia, isso por volta de 1780, ao lado da casa de morada do patriarca e vizinha ao Tanque de Nação - onde se situava o Mercado Municipal.

   Quando Bernardo morreu deu-se a doação à igreja católica dessa capela e braças de terras adjacentes, com a ressalva de que as filhas de Bernadro e Josefa Maria do Sacramento, o reverendo Antônio Manoel de Oliveira e mais Custódio Francisco Junqueira morassem nas referidas terras, sem pagar o fôro.

   Depois da emancipação política de Irará, em 1876, Serrinha com ‘status’ de município, as localidades distritais louvavam outros santos e santas, Santo Antônio no Lamarão, Teofilândia e na Chapada; Nossa Senhora da Conceição, em Araci; Nossa Senhora do Belém, em Biritinga; e São João Baptista, em Barrocas. 

   Foi exatamente nessa época em que o vigário (essa era a denominação) Carlos Olímpio Ribeiro, já velhinho, faleceu no início dos anos 1950, passando o bastão para o padre Demócrito Mendes de Barros, então chamado de vigário cooperador. 

   Em 1949, eu tinha 4 anos de idade, quando Serrinha sediou o III Congresso Regional das Vocações Sacerdotais com a presença do arcebispo primaz do Brasil, dom Álvaro Augusto da Silva. Foi um acontecimento e tanto. Até uma guarda 'suiça' - com jovens serrinhenses - imitando a guarda papal do Vaticano foi organizada.

   O padre Demócrito ficou com a missão de construir a Igreja Nova, ideia do padre Carlos, o qual sonhava com um bispado na localidade e trouxera para Serrinha a Procissão do Fogaréu.

   Demócrito começou a construir a Igreja Nova (hoje catedral) na praça Miguel Carneiro, no antigo local onde existia a Usina de Energia movida a motor diesel e a antiga Capela de Sêo Marianno (Primeiro intendente de Serrinha, Marianno Sylvio Ribeiro, governou de 3 de março de 1889 a 20 de janeiro de 1893) e isso fez com que o padre programasse leilões na praça Luís Nogueira.
 
   Na festa para Sant'Anna essa era a parte que a gente, digo as crianças, mais gostava. O novenário era interessante só para os adultos católicos porque a gente não entendia nada ou quase nada do ato religioso em si, nem os adultos, porque parte das missas era oficiada em latim. Valia pela fé, pela movimentação na praça. 
 
  A Prefeitura colocava gambiarras entre o coreto e o cruzeiro; e entre o cruzeiro e a igreja e nas laterais próximas ao jardim, isso para clarear os locais onde ocorriam os leilões. Ainda não havia o Abrigo Casablanca e a parte mais valorizada era do lado do jardim.

   O jardim também era o antigo ainda da época da intendência de Luís Nogueira. Só nos anos 1960, quando eu já estava usando calças compridas foi que o prefeito Carlos Mota (1959/1963) fez um jardim novo com jarros iluminados a neon copiados de uma cidade paulista onde morava um dos seus irmãos, o Totonho Mota.

   Além do leilão, que a gente gostava demais, apreciando José Ramos da Silva (Nelinho Magarefe) poetizando a venda das mercadorias, havia o desfile da Filarmônica 30 de Junho de sua sede até o coreto onde executava um concerto com dobrados e clássicos.

    Nelinho deixava a gente de boca aberta escutando-o. Negro alto e forte, retinto, voz vibrante, pegava um 'capão' pelas pernas, levava ao alto com as mãos e dizia: 

  - Este aqui quem deu foi o agricultor tal e vou abrir o leilão pedindo apenas 5 cruzeiros nesse galo. Agora, olha só a beleza desse galo, olha só a postura desse galo, qualquer galinha gostaria de ter um galo desses no terreiro.

   - Nesse momento alguém gritava: dou 6 cruzeiros no galo.

   - Fulano de tal deu 6 cruzeiros nessa maravilha de galo, mas ele vale muito do que isso, 6 é pouco, quem vai dar mais, quem dá mais.

   - Alguém gritava: dou 8 cruzeiros no galo.

   - Não disse a vocês que o galo valia mais. E levantava o galo mostrando a todos, gesticulava, bradava, apelava por um melhor preço.

   - Vou dar 10 cruzeiros no galo.

   - A disputa tá boa entre o comerciante tal que deu 8 e o fulano de tal que deu 10. Vale ainda mais.

   Ninguém falava mais nada e a gente ficava de boca aberta olhando Nelinho com o galo nas mãos ao alto até que ele dizia ...dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhes três... o galo foi arrematado por fulano de tal. 

   E seguia leiloando outro animal ou objeto deixando por último os garrotes doados pelos fazendeiros, considerados os mimos mais valiosos.

   O padre Demócrito era obstinado. Falava com os comerciantes, com os fazendeiros, com os professores, com as famílias católicas e estabelecia uma homenagem para cada grupo durante a novena, cada dia com mordomos. 

   Exemplos: Primeira noite: Patrocinada por Dona Mariquiha Campos e Nanova Valverde; a quinta noite foi patrocinada pela Comissão de Nossa Senhora das Graças tendo como componentes a família Santiago, Flaviano Gonzaga de Matos, Manoel Sobrinho e Bráulio Franco orador.

   Evidente que, cada família além de patrocinar a noite enfeitando a igreja, doava mimos para os leilões. Tinha a noite das moças; noite dos ferroviários; noite dos fazendeiros e assim por diante. 

   Do ponto-de-vista financeiro para a igreja a noite mais esperada era dos fazendeiros. Alguns deles doavam carneiros e garrotes para serem leiloados.

   Foi assim, de garrote em garrote; de galo em galo; de saco de cimento a milheiro de tijolos; de bolo a pratos de pastéis; de vestido de renda a chapéus decorados que a igreja foi subindo e virou uma realidade.

   Crianças não percebem a dimensão desse esforço do padre, alguns avarentos criticavam que o padre se beneficiava de algum bem, o que era uma infâmia porque Demócrito morreu pobre e vivendo seus últimos dias na casa paroquial. 

   Em compensação, a gente vivenciava a festa, admirava, dava benção padre, cortejava o sacristão José, o beato Torquato e curtia a construção da igreja brincando de picula nos fundos alicerces e jogando torrôes uns nos outros, obra sob o comando do mestre-de-obras Sêo João Evangelista.

    Outro grande prazer na festa de Sant'Anna era assistir o desfile da Filarmônica 30 de Junho entre a sua sede - ainda hoje no mesmo local - e o coreto. Quando a banda se enfileirava em frente a '30' a gente corria e vinha marchando com a filarmônica. Uma maravilha.

   Dois músicos a gente admirava em especial. Um deles era Zé Ramos, apelidado de 'Coqueiro' por ser bem alto, zagueiro do São Cristovão e que tocava tuba. A tuba tem algo em torno de 1m 50cm com mais os quase 2 metros de Zé Ramos, quando 'Coqueiro' despontava soprando-a, parte da tuba tocava nas folhas dos oitizeiros. 

   Era o gigante da banda e a garotada ficava boquiaberta.

   O outro músico era Epifânio Simão, apelidado de 'macaco Simão', mas, a gente não tinha coragem de chamá-lo pelo apelido sob pena de levar uma baquetada, o qual tocava caixa e formava na última fila, com o bumbo de Chibarra e os pratos, estes tocados por Ernesto gráfico. 

   O repique que Simão dava na caixa era algo sensacional ---tárárá...tárárá...tárárá...táráráááá ---- usando as baquetas com uma maestria impressionante para mãos gordas. A gente ficava olhando com a vontade enorme de fazer o mesmo, de imitá-lo, e alguns de nós seguia a banda ao lado de Simão até que chegasse ao coreto.

   Depois tinha o concerto nos intervalos dos leilões e a gente não desgrudava os olhos da banda.

   A festa para Sant'Anna durava 9 dias - novenário - e normalmente ia das 19h às 23h, máximo. No dia da santa, 26 de julho - a data já foi móvel em Serrinha - tinha a procissão na Praça Luís Nogueira.