Cultura

PROCISSÃO DO FOGARÉU, O PEIXE E SUBIDA DO MORRO NO MEU TEMPO DE MENINO

Um tempo em que na procissão do fogaréu só podia participar homens. Na subida do morro as mulheres podiam ir.
Tasso Franco , da redação em Salvador | 15/08/2020 às 08:18
Foto quando tinha 12 anos com cacho de licouri e chapéu
Foto: Arquivo do autor
   O jornalista Tasso Franco publicou neste sábado, 5, a 7ª crônica do seu livro No Meu Tempo de Menino, no wattpad, sobre a semana santa, a procissão do fogaréu, o peixe e a subida do morro. Leia abaixo e todas as demais no wattpad.

A PROCISSÃO DO FOGARÉU E A SUBIDA DO MORRO NO MEU TEMPO DE MENINO


     A terceira festa popular que a gente mais curtia em Serrinha No Meu Tempo de Menino (1945/1957) era a Semana Santa. Todas as festas populares estavam ligadas a igreja católica - Natal, Reis, Semana Santana, Santo Antônio, São João, São Pedro, Sant'Anna - exceto o Carnaval que, embora seja a festa da carne ('carnis levale' ou adeus à carne) que a partir dela se fazia um longo período de abstinência à carne, uma quarentena até a semana santa, teria nascido na Grécia 520 d.C. e chegou ao Novo Mundo pelas mãos dos cristãos portugueses e genoveses que aportaram no Brasil

   A semana santa era um período que a gente gostava com certo receio, até com medo, porque se falava da morte de Jesus e sua crucificação, e menino não gosta dessas coisas. E ainda havia (e há) uma imagem de Cristo no tamanho de um homem num nicho da igreja Matriz de Sant'Anna coberta com uma cortina que a gente tinha medo de olhar, e só ia lá com amigos ou com os pais.

   Menino também não gosta de coisas relacionadas a morte e não entende nada de ressureição e assim por diante. O que a gente curtia mesmo era a Procissão do Fogaréu, a subida do morro, a queima de Judas e a comilança que havia durante a semana santa com peixes, vatapás, castanhas, carurus e outras iguarias.

  Serrinha, como já dito, foi a terra que Judas amarrou sua bota e deixou no sopé da Serra.  Não tem mar, nem rio, nem lagoa e seus açudes não eram piscosos, mas o certo é que durante a semana santa apareciam nas vendas e nos armazéns de secos e molhados, o bacalhau e alguns pescados.

   Meu pai comprava umas traíras negras na Cabeça da Vaca quando voltava de sua fazenda Capitão montando num cavalo baio e as colocava nas bolsas do alforje. Tinham que ser tratadas e comidas no mesmo dia ou no seguinte.

   Eram deliciosas embora tivessem muitas espinhas e era preciso ter todo cuidado ao comê-las. Minha mãe ficava preocupada e até contava histórias - pra amedrontar a gente - de crianças que se engasgaram com espinhas de peixe e morriam.

   Peixe era um animal tão raro na cidade que, de fato, a gente só comia na semana santa. Dava-se a descoberta do peixe. Acostumados a comer carne, a gente perguntava: - Que bicho é esse, mãe? Muitos meninos não comiam. 

   O bacalhau, este sim, era uma maravilha. mas as famílias compravam pouco porque era caro. Pouco bacalhau na mesa e muita batata do reino pra encher o prato e os olhos da gente.

   Minha mãe não era boa cozinheira. Meu pai nunca a deixou ir para a cozinha porque tinha 4 filhos e não era moleza dar conta da molecada. Agora, Zildinha fazia um vatapá com castanhas que vamos tirar o chapéu junino.

     A procissão tinha o percurso só urbano. Saía da matriz de Sant'Anna, pegava a rua Direita, Largo da Matança, seguia até a rua da Estação fazenda uma parada em frente à casa de dona Marieta, mãe adotiva de Paulo Teiú, e depois seguia até a praça Luís Nogueira parando na casa de Tia Pequena de Basílio.

   A procissão terminava cedo, por volta das 20h30min, a tempo do pessoal voltar para as roças. Não havia atos teatrais, nem 'romanos' estilizados desfilando portando lanças, nada. Só a procissão normalmente com o prefeito conduzindo a cruz processual, o sacristão, coroinhas e povo.

   A procissão acontecia na quinta-feira, dia que era feriado meia-boca. Nas escolas não havia aulas e a Prefeitura era fechada. O comércio funcionava. Ainda hoje é assim, com naturais mudanças na procissão.

   A sexta-feira santa era um dia triste, sombrio, salvo pela subida ao morro. Não me recordo a primeira vez que subi o morro se foi em 1950 ou 1955, quando completei 5/10 anos. Tenho impressão que foi em 1955. Fui com amigos. Meu pai não era de subir o morro. Registrado tenho uma foto ao lado de minha irmã Celeste, de Tetéu, Foba, Eleanor, Rejane e outros, em 1957.

   Pra chegar ao morro mais alto da Serra, na antiga estrada para Barrocas, a gente atravessava o pontilhão da bomba e depois pegava a estrada. Não havia o bairro Nossa Senhora de Fátima. Era tudo mato, fazendas e sítios. A localidade dos 13 já existia, poucas casas.

   Serrinha era pequenina e a gente ficava admirado com sua beleza lá do alto. Pouca gente tirava foto porque não havia celulares, nem máquinas fotográficas à venda no comércio. Eram poucas as pessoas que tinham esse equipamento na cidade, as famosas ‘Rolleiflex’ e “Kodacks’.

   A tarde tinha a procissão do Senhor Morto na praça Luís Nogueira. A sexta-santa era apavorante porque se dizia que menino ou rapaz que batesse na mãe virava lobisomem. E aquele que tentasse por brincadeira se deitar onde se espojara um jegue ou uma mula virava lobisomem. A mula mais famosa de Serrinha era a de Sêo João Devoto.

   A gente se pelava de medo com essas histórias, ainda mais na sexta-feira santa quando a cidade parecia um cemitério, o comércio era fechado, os poucos bares que existiam não vendiam bebidas alcoólicas e os serviços de alto-falantes tocavam músicas clássicas que eram consideradas fúnebres. Nunca entendi essa relação.

   A alegria voltava a cidade no sábado de Aleluia com a feira livre, comércio aberto, mais guloseimas nas mesas das famílias e a queima dos Judas. Não se falava noutra coisa. Meu pai era um dos poetas versadores da herança deixada pelo Judas aos políticos locais.

   O assunto rendia pelo menos uma semana na boca do povo. - Você viu o que Judas deixou para Carlos Mota? - era o que se ouvia. - E pra Lourinho, você não comenta? – E para o doutor André Negreiros, o Judas falou o que?

   Ainda tinha o domingo da Páscoa pra fechar o evento. Nessa época também eram raros os ovos de chocolate. Serrinha nunca teve essa tradição, chocolate era um produto raríssimo.

    Agora, a mesa do domingo era farta, com bacalhau e vinho barato para os adultos e pra nós refresco da fruta de época. E o ‘bendito’ peixe.

  *** Personagens da foto acima: Em pé, Foba (Florisvaldo Freitas), Eleonor (Nonô), Rejane, Vera, Olga, Asdrúbal. Sentados: Celeste (minha irmã), Tetéu (José Fernandes Queiroz) e eu (Tasso Franco) com cacho de licouri e chapéu. Não saberia dizer quem fez a foto.