Cultura

TF NO MEU TEMPO DE MENINO: A MATRIZ DE SANT’ANNA E O PADRE DEMÓCRITO

A Matriz de Sant'Anna é o único monumento de Serrinha da época do Brasil colônia, data de 1780
Tasso Franco , da redação em Salvador | 29/07/2020 às 09:57
A matriz ainda com o cruzeiro e o sobrado de Sêo Leobino farmacêutico ao lado
Foto: Pró-Memória
    Segunda crônica de TF no livro No Meu Tempo de Menino (1945/1957), em Serrinha, com publicação no wattpad. Baixe o aplicativo e leia todas as crônicas, gratuitamente.
    
     A MATRIZ DE SANT’ANNA E O PADRE DEMOCRITO

         No meu tempo de menino só havia uma igreja católica em Serrinha - a matriz de Senhora Sant'Anna, na Praça Luís Nogueira. A população só falava 'igreja da praça'. Só os católicos mais letrados diziam Igreja Matriz de Senhora Sant'Anna. Popularmente era a 'igreja da praça'. 

   Na década de 1940, a cidade possuía 5 praças, mas, só a principal - Manuel Victorino, depois Luís Nogueira - era chamada assim. As demais eram Largos - da Usina, da Estação, da Federação, da Matança, da Sericicultura.

   A igreja da praça provocava um fascínio enorme em nós, meninos. Fascínio e medo. A gente tinha medo da igreja e do cemitério. Quando alguém falava: "Você tem coragem de entrar na igreja sozinho de noite?" A gente respondia - Deus me livre, tenho medo. "E no cemitério do padre você iria? - Pior ainda, tenho medo de almas.

  Menino tinha medo de imagens de santos no escuro e de almas. Daí que a gente adorava muito a igreja da praça, de dia, por fora; e por dentro, de noite, só quando tinha missa e/ou casamento, com o templo todo aceso e o coral cantando no coro. Era lindo.

   Agora, pra ver a imagem do Senhor Morto que havia num nicho à direita do altar de São Joaquim, só acompanhado. A gente ficava com medo, contrito, e algum adulto tinha que ir para mostrar, explicar, levantar uma cortinazinha que havia e lá estava o santo deitado. Esta imagem só ia às ruas nas sextas-feiras santas. O Jesus judeu, real, não tinha aquela cara bonita de Jesus da igreja, com cabelos longos.

   O padre se chamava Demócrito Mendes de Barros. Mulato alto, magro, fumante e tomador de pinga. Pra disfarçar bebericava uma branquinha no Bar Itaúna numa xícara. Ele e Paulino Biêta, pai do ex-prefeito Popó. 

   O padre era uma figura carismática. Professor, político, escritor, com formação religiosa pautada na igreja tradicionalista do cardeal dom Álvaro Augusto da Silva, então primaz do Brasil. Seguia essa linha. Nada de mulheres na igreja sem véu cobrindo a cabeça. Nem violão, viola ou atabaque. Só órgão. Cantochão.

   Todo mundo chamava-o de padre Demócrito. Havia, ainda, a irmã do padre, Zilda Barros, a qual tinha uma escola de datilografia. Quando menino grande aprendi a teclar na escola da irmã do padre. Ela dizia ao lado da gente: - Na mão esquerda o dedo mindinho tem que teclar o a, depois segue os dedos 'seu vizinho' no s, 'maior de todos' d, e 'indicador' no f e g; do outro lado, com a mão direita g, h, j, k, l. 

   - Não tô acertando professora, reclamava.

   - Repita 20 vezes o exercício, respondia. 

   Era um sacrifício. Graças a esses ensinamentos em minha vida profissional de jornalista teclei com habilidade 30 anos de máquinas datilográficas e hoje sigo no computador.

   Outro personagem era o motorista do padre que a gente chamava Antônio do Padre. Dirigia um jeep Willys para atender o pároco. As más línguas diziam que Antônio era filho do padre. Que parecia, parecia, mas, são boatos do povo. Dizia-se, também, as tais más línguas, que o padre tinha fiéis fêmeas mais próximas dele. Digamos assim, enamoradas. Puras más línguas. Demócrito era casto.

   Quando entrei no Ginásio conheci melhor o padre porque ele ensinava latim. Não falava latim mas sabia muitas frases decoradas e 'quebrava um galho' ensinando-nos declinações. Latim já era uma língua morta, mas, havia essa disciplina no ginásio e as missas eram oficiadas - salvo o sermão - em latim. Os fiéis não entendiam nada do que o padre falava em latim, mas, fazia parte do rito. A fé, remove montanhas.

   Faço um breve parêntesis para explicar o que era menino grande. Na época, os termos usados eram bebê/criança para pessoas até 3 anos; dos 3 aos 7 era menino-pequeno (usava-se calças curtas); e dos 7 aos 12 menino-grande (usava-se calças compridas). A partir dos 12 aos 21 era rapaz (época de comprar um terno). Depois, homem. 

    Mulher a mesma coisa: menina, mocinha (menina pequena) e moça (menina grande - usava sapato de salto alto). Depois, mulher. Não havia esse negócio de pré-adolescente, adolescente e jovem. 

   Voltando ao padre, havia três outros auxiliares: Sêo Torquatro sacristão, um vizinho nosso da Praça da Usina; Zé Sacristão, um camarada baixinho, rezador ao extremo, que zelava o templo e ajudava nas missas e Sêo Lúcio que chegou depois e integrava - ainda jovem - essa confraria.

   Havia três festas religiosas que a gente não perdia. Duas delas eram realizadas durante a semana santa - a Procissão do Fogaréu e a Sexta da Paixão; e a terceira a Festa de Sant'Anna, novenário, nove dias de missas e badalações.

   Meu pai não era católico mas levava os filhos pra ver a Procissão do Fogaréu, da casa de tia Pequena de Basílio, que morava num casarão onde hoje é o Hotel Dimantina. A procissão saia da matriz, seguia pela Rua Direita, depois descia até a esquina da casa de Sêo Brizolara, e tomava rumo direto até a casa de dona Marieta na rua da Estação. Daí subia de volta à praça e retornava à igreja. 

   Em cada lugar desses tinham uma parada para o cântico do "Senhor Deus Misericórdia". Era a parte mais bonita. A matraca prá-prá-prá-prá-prá anunciava que os fiéis tinham que se ajoelhar e o padre puxava o "pequei Senhor...Misericórdia". A última parada era em frente a casa de Tia Pequena, senhora solteirona, devota até a alma.

   Nessa época, só os homens acompanhavam a procissão e as tochas eram feitas pelas próprias pessoas. Como meu pai tinha uma papelaria, eu fazia tochas pra vender aos tabaréus e aos citadinos. Armava uma banquinha na praça. Nem me lembro mais o preço. 

   Era a coisa mais fácil de fazer: quatro abas de papéis colados e um fundo de papelão com furo para introduzir a vela. A gente também brincava nas procissões apagando as velas dos fiéis quando eles se ajoelhavam para orar e depois saíamos correndo. 

   Depois, a Prefeitura resolveu produzir as tochas com um marketing fajuto e acabou essa tradição, infelizmente. Onde a Prefeitura entra vira política e adeus tradição.

   A outra festa que a gente não perdia era a procissão do Senhor Morto na sexta santa. Nesse dia era proibido ingerir bebidas alcoólicas (salvo o vinho), dançar, cantar, cortar cabelo, fornicar e assim por diante. Os adultos “fechavam o balaio” (não faziam sexo) na quinta e só abriam no sábado de Aleluia. Quem xingasse a mãe neste dia virava lobisomem. Comer carne era ir para a terra do demo.

   A procissão era realizada na praça e a parte mais emocionante era quando dona Valda do Cartório fazia o papel de Verônica e entoava um cântico lamurioso desenrolando uma imagem da face de Jesus ensanguentada. Ela subia numa cadeira e a população ficava de queixo caído. 

   A terceira festa era a mais glamurosa, a de Sant'Anna. Essa sim, tinha foguetes, cachaça, cerveja, bolos, quermesses, música e missas toda noite durante nove dias. O novenário era dedicado cada noite a famílias católicas e categorias/ou instituições. Noite da família tal mais dos comerciantes e caixeiros; noite da família e mais ferroviários e professoras. 

   Havia, após a missa a festa de largo. Existia entre a matriz e o coreto um cruzeiro e as barracas eram armadas em volta dessa área, especialmente uma maior onde Nelinho magarefe comandava os leilões. No Coreto apresentava-se a Filarmônica 30 de Junho. 

   Recentemente, estive participando de um casamento na Matriz de Sant'Anna e passaram por minha cabeça essas lembranças. Daí que estou contando pra vocês. Num momento desses, não poderia deixar de ver o Jesus conduzindo a cruz no ombro no mesmo altar da época em que eu era menino.