Cultura

ANGOLA: Mito Gaspar e as raízes sonoras de Katenda do Céu


O gosto pela música em Mito Gaspar foi desenvolvido no seio familiar
Jornal de Angola , Luanda | 26/04/2018 às 12:20
Mito Gaspar leva tradição ao palco do Show do Mês
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Das memórias e influências registadas na infância, vivida entre a educação rígida do pai, em defesa do estatuto de assimilado, e o carinho recebido nas férias dos avós, que contornavam as restrições impostas ao uso do kimbundu, como confessou certa vez a Jomo Fortunato, Mito Gaspar transformou a musicalidade num exercício de continuidade das raízes sonoras de Katenda do Céu, Sukeco, Kalandula e Cacuso.

“Devo confessar que tomei contacto com as limitações no uso da língua local muito mais tarde, quando já tinha aproximadamente nove anos. Fui criado, desde tenra idade, em Katenda, pelos meus avós maternos e, nessa altura, já falava kimbundu. Quando conheci o universo urbano, ou melhor, quando o meu pai entendeu nos chamar à cidade, fui advertido para não fazer uso desta língua, porque se impunha valorizar o estatuto de assimilado”, partilhou, na matéria assinada pelo jornalista e crítico musical, no Jornal de Angola. 

Fluente e correcto, quando se expressa na língua dominante da região, o músico e compositor faz desfilar, num casamento do tradicional com o moderno, sonoridades típicas dos ambientes das zonas rurais. Cânticos da terra usados nos momentos de celebração, como “rituais de circuncisão, nascimento, colheitas e morte”, daí que em 1964, altura em que aos sete anos lhe é retirado o prepúcio, comandava o “Grupo dos Batuqueiros”, formado por colegas na escola primária, muito solicitado para essas cerimónias.

O gosto pela música em Mito Gaspar foi desenvolvido no seio familiar. A mãe era tocadora de harmónica, o pai fazia percussão e os avós distinguiam-se como bailarinos, nos encontros de celebração, na comunidade, “depois de uma grande colheita”, por exemplo.

A militância artística em bases mais estruturadas começa de 1973 a 1975, período em que integrou, em Malanje, como guitarra ritmo, a banda “Top Mag”, ao lado de Arnaldo Macedo (guitarra solo), Nhanga de Menezes (bateria e voz) e Paulino da Ficha (teclados). Era já uma formação mais urbana, cujo repertório tinha a predominância de “música pop internacional e sucessos angolanos que se ouviam na época”.

Com a mudança para a Huíla, Mito Gaspar forma, em 1978, na cidade do Lubango, o “Trio Henda”, com Tony Morgado (percussão) e Hilário Ventura (dikanza), que venceu em 1981 o “Festival Juvenil da Canção” e, em 1983, a primeira edição do “Variante”. Os grandes sucessos eram “Havemos de voltar”, poema de Agostinho Neto, e “Man Polé”, ainda hoje um tema de escuta obrigatória.

Seguiu-se a exibição da profundidade estética e cultural da sua música, de matriz tradicional, em festivais internacionais. México, Cuba, “Expo-Sevilha” e Brasil testemunharam o talento do exímio guitarrista, que adorna as notas e os acordes do braço do violão com dizeres de uma canção ouvida num kimbundu profundo, a narrar histórias de vivências e anseios de um povo.
 
Valor da tradição

Tradicionalista confesso, razão pela qual defende a “assunção do regional” como o primeiro e “fundamental passo para a internacionalização”, traço encontrado igualmente na musicalidade de Gabriel Tchiema, quiçá por influência do corredor que nos leva às lundas, Mito Gaspar reúne na música, ainda que de forma involuntária, uma espécie de acervo histórico e cultural da região de Malanje.  

“Hassa”, canção que teve honras de constar entre sucessos publicados em colectânea pela francesa Ariel Bigault, bem como as músicas “Wadya”, “Kizuwa ni kizwa”, “Tanaku”, “Tululukenu”, “Kubuka kya mona”, “Pambu ya njila”, “Kandanda” e “Jipange”, do disco “Pam-bu ya njila”, atestam o compromisso do músico e compositor com o tradicional.