Fernando Conceição é jornalista e professor da FACOM UFBA
Fernando Conceição , Salvador |
20/11/2017 às 12:15
Bairro do Calabar na porta da Av Centenário
Foto: PM
NUNCA TIVE amigo, na acepção própria do termo, maior que Toníco. Antônio Sampaio, também apelidado de Risadinha, nasceu em Sapeaçu, 170km distante de Salvador, capital da Bahia.
Com ele fiz muitas viagens na vida pelo Brasil. A mais aventureira de todas de ida e volta, por terra e rios, à Amazônia. Conto em próximo artigo aqui mesmo neste blog.
Foi na época em que assassinaram a bala o ambientalista e seringueiro Chico Mendes.
Uma vez em Brasília, convidados que fomos os dois para uma atividade na UnB em torno de Danielle Miterrand, mulher do presidente socialista da França, François Miterrand, partiu dele a iniciativa de quebrar o protocolo.
Tínhamos mais ou menos a mesma idade e iniciamos juntos, na adolescência, a luta comunitária no Calabar. Que ele, mais do que qualquer uma de todas as centenas de moradores diretamente envolvidas na mobilização, apaixonadamente abraçou sem peias.
Não perdia ocasião de apelar a favor da comunidade. Assim fez à primeira-dama da França (1981-1995), executiva da Fundação Danielle Miterrand, de quem Tonico arrancou o compromisso de doar uma determinada verba para a montagem da padaria comunitária do Calabar.
Era o mais transparente e honesto de todos os membros do grupo de Jovens Unidos do Calabar. Por isso responsável – ao lado de Jorge Santana Santa Rita – por toda a movimentação de recursos financeiros que arrecadávamos para o trabalho comunitário.
Tonico, com maioria absoluta dos votos de em torno de 2.000 moradores, em 1980 foi eleito o primeiro presidente da Associação de Moradores do Calabar. Ao contrário de outros de nós, sua capacidade de diálogo permitia tornar-se quase uma unanimidade no bairro.
Das crianças aos velhos, todos adoravam Tonico.
Criou um bordão inesquecível ao megafone, quando percorria becos e ruelas do bairro convocando a população: “Ôôôbaaaaa!”
Sua gestão, como presidente ou tesoureiro, consolidou a luta comunitária nos difíceis anos do fim da ditadura militar no país, entre 1980 a 1985.
Foi responsável pela construção da Escola Aberta do Calabar, transformada em modelo de educação inclusiva comunitária. Exportado para outras comunidades e instituições como a Escola Criativa Olodum ou a Escola do bloco afro Ilê Aiyê, às quais Tonico voluntariamente emprestou sua experiência contábil.
Vindo ainda criança de Sapeaçu para ser criado por suas tias na favela, Tonico fez o primário, o secundário e um curso técnico em Contabilidade. Desde criança ajudava as despesas domésticas mercando, pelas ruas, aos gritos, com uma travessa de bolos feitos pelas tias. Daí ter recebido ainda outro apelido, Bolinho.
O nome Risadinha foi-lhe pespegado já no tempo em que se tornou funcionário na Sudic – Superintendência de Desenvolvimento Industrial e Comercial da Bahia, empresa mista à época sediada no Centro Industrial de Aratu.
É que Tonico sempre foi uma graça em pessoa.
Doce, mesmo nos momentos mais ferozes, jamais perdia o riso, jamais lhe escapava uma gargalhada verdadeira, vinda de dentro, inocente como a de uma criança.
Risadinha era como seus colegas da Sudic o conheciam. De fato, no começo da luta ele era o único dos jovens de emprego fixo. Ainda assim, seus superiores hierárquicos na repartição pública sempre o liberavam para as responsabilidades associativas.
Sem a disponibilidade e a disposição de Tonico seriam muito mais difíceis e provavelmente menos exitosas as lutas do Calabar, que neste 2017 completam 40 anos de iniciadas.
Lutas que obrigaram os governantes municipais e estaduais trazerem obras de saneamento e consolidar no local a ex-favela, localizada em área nobre de grande especulação imobiliária da capital baiana.
Lutas que fizeram o Calabar respeitado por partidos políticos da esquerda à direita, por igrejas, por movimentos sociais e de favelados. Principalmente nos termos das culturas populares em ascensão.
Emotivo e sensibilidade à flor da pele, Tonico foi um herói a seu modo. Alegre e descontraído sempre. Noutra de suas generosidades, fomos os dois colaborar com um projeto de escola comunitária em Vitória da Conquista, 530km de Salvador.
Depois de um dia inteiro organizando a contabilidade da instituição, dirigida majoritariamente por mulheres, à noite fomos convidados para participar de um forró na sede comunitária.
“Suíça” baiana por conta das baixas temperaturas noturnas, em Conquista as festas são animadas com quentão, bebida aquecida no fogo, misturada com vinho e outros ingredientes excitantes.
Tonico, desacostumado, caiu na folia e nos drinques enquanto saracoteava com as damas no forró.
De repente, não mais que de repente, no meio da roda de forrozeiros e da poeira das arriba-saias, Tonico estatelou-se no salão, de papo pro ar, contudo acordado. Não perdeu o ritmo, levantou-se e soltou a sua gargalhada. Sim, ele era hipertenso, suava às cântaras.
No sábado de Carnaval de 2011, enquanto levava seu cachorro a passear, sem largar o cigarro da boca, Antônio Sampaio teve um infarto fulminante. O então deputado federal Luiz Alberto (PT-BA) foi ao enterro. A senadora Lídice da Mata (PSB-BA) fez um discurso em sua memória em plenário.
Antônio Sampaio hoje nomeia uma praça da comunidade. Deixou viúva e filhos. O nome do primogênito, Kunta Kinté, foi dado pelo pai em homenagem ao herói da série “Raízes“, do livro de Alex Haley, que muito o tocou