Cultura

O Papa Francisco é de esquerda? Não se iludam: é apenas católico

O jornalista José Manuel Fernandes escreve no jornal O Público
José Manuel Fernandes , Lisboa | 24/01/2014 às 18:02
Papa Francisco
Foto: DIV
O termo não podia ser mais
forte: “horrífi co”. Não
apenas horrível, horrífi co.
E foi o termo escolhido pelo
Papa Francisco, este fim-desemana,
para se referir ao problema do aborto.

As agências de informação
internacionais trataram
logo de interpretar a frase.
Era, escreveram, uma forma de acalmar
os sectores mais conservadores da Igreja.
Nem lhes ocorreu que fosse mesmo a
opinião do Papa. Não quadrava na sua
imagem estereotipada de um bispo de
Roma modernaço, quiçá revolucionário.

No entanto, a doutrina de Bergoglio não
podia ser mais clara e até vem na sua tão
celebrada exortação apostólica Evangelii
Gaudium: “Não se deve esperar que a Igreja
altere a sua posição sobre esta questão”,
escreveu o Papa. 

Que acrescentou: “Quero
ser completamente honesto, este não é
um assunto sujeito a supostas reformas ou
‘modernizações’. Não é opção progressista
pretender resolver os problemas eliminando
uma vida humana” (parágrafo 214).

Também este fim-de-semana houve muita
excitação na imprensa e nas redes sociais
com a notícia de que o Papa baptizara os
filhos de uma mãe solteira e de um casal
não unido pelo matrimónio. Só uma mal
disfarçada ignorância pode justificar essa
excitação, pois não haverá gesto mais
católico do que o de baptizar duas crianças
nessas circunstâncias. Vem nas escrituras.

Estes são apenas dois exemplos recentes
de um estranho caso de paixão: a de
uma parte da esquerda para com o Papa
Francisco, de repente transformado no
messias que políticos mais terrenos não
conseguem ser. Mário Soares, por exemplo,
assume que só tem “dois ídolos no plano
político” — Obama e o Papa Francisco
—, e o colunista do Guardian Jonathan
Freedland chega a propor que posters do
sumo pontífi ce substituam os de Obama
nos quartos dos adolescentes, uma vez que
seria “o óbvio novo herói da esquerda”.

Muitos jornalistas e comentadores afinam
pelo mesmo diapasão, mostrando uma
irresistível tendência para ver apenas os
gestos de Francisco que vão ao encontro
das suas causas e ignorando todos os
demais. Chegou-se ao ponto de a mais
antiga revista gay dos Estados Unidos, a
Advocate, ter eleito como figura do ano este
homem de branco para quem o casamento
entre pessoas do mesmo sexo é “um
retrocesso antropológico”. 

Não tenho qualquer dúvida
de que o Papa Francisco é
uma figura extraordinária e
não pude deixar de notar o
imenso significado do nome
que escolheu. Não sendo eu
um crente, devo dizer que um
dos locais do mundo onde
mais senti a presença de um
transcendente foi em Assis,
que, por incrível coincidência, visitei pela
primeira vez na manhã de 11 de Setembro de
2011. 

Foi por isso com enorme expectativa
que segui os primeiros meses de pontificado
e não me surpreendeu a sua resoluta
opção por uma Igreja mais próxima dos
pobres. Essa ideia de proximidade com
os mais fracos está, de resto, no coração
do cristianismo e quem pôde, como eu
pude, conhecer alguns dos locais mais
desgraçados do país e do mundo, é
testemunha de como, tantas vezes, são
apenas as instituições da Igreja as que
resistem quando tudo o resto se desmorona.

O exemplo pessoal de Francisco, ao
abdicar de bens e confortos materiais, ao
manter uma infinita capacidade para se
aproximar dos doentes e dos fracos, da
Praça de São Pedro à ilha de Lampedusa,
permitiu que se tornasse, de um dia para o
outro, numa figura imensamente popular.
A forma aberta como gosta de abordar os
dilemas da Igreja fez, ao mesmo tempo,
com que seja visto como um reformador
radical. Houve até quem se entusiasmasse
ao ponto de anunciar que “tinha abolido o
pecado”: aconteceu com Eugenio Scalfari, o
infl uente fundador do La Repubblica,
cuja crónica obrigou a Santa Sé a um impensável,
mas necessário, desmentido formal.

A exortação apostólica Evangelii Gaudium, o seu
primeiro documento programático, criou a ideia de
que estaríamos perante uma nova Igreja. Não faltou
quem, à esquerda, saudasse algumas
passagens como representando uma
condenação global do capitalismo e da
austeridade, apesar , no documento,
essas palavras
nunca aparecerem. Tal como não faltaram,
à direita, acusações de marxismo, apesar de
o documento não só não propor nenhum
modelo económico, como nele se condenar
o totalitarismo e o relativismo. Na verdade,
a Evangelii Gaudium pode conter propostas
revolucionárias, mas não as feitas por estas
leituras apressadas e interesseiras.

 O Papa condenou, de forma
muito frontal e dura, a
idolatria do dinheiro, a
obsessão pelo consumo e a
submissão às tentações da
ganância. Nem poderia fazer
outra coisa. Afi nal de contas,
não prega ele a mensagem de
quem condenou a idolatria
dos bezerros de ouro? Não
dirige ele uma instituição que, desde 1891 e
da encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII,
até à recentíssima Caritas in Veritate, de
Bento XVI, sempre defendeu o primado da
pessoa humana sobre a economia?
É certo que o Papa regista os limites
da economia de mercado em termos que
um economista liberal não faria, mas o
seu documento não deixa de se inscrever
numa evolução da doutrina da Igreja que
partiu de uma condenação muito forte
do liberalismo (e do socialismo) e que,
encíclica após encíclica, foi combinando
as suas recomendações sociais e morais
com as vantagens de uma economia aberta
e competitiva. 

Esse processo foi muito
bem descrito por Michael Novak no seu A
Ética Católica e o Espírito do Capitalismo e
esta exortação apostólica não representa
qualquer inversão de percurso. Não é,
de resto, a existência de uma economia
de mercado que ele critica - são antes “os
interesses do mercado divinizado”.

O que percorre todo o documento é a
O Papa não propõe qualquer revolução
política – mas interpela-nos a uma revolução
de comportamentos

preocupação com a condição humana e
com a necessidade de uma ética que presida
às decisões políticas e económicas não só ao
nível micro, o das nossas relações pessoais,
mas também ao nível macro, o dos
governos. A doutrina da Igreja, e Francisco
não se afasta dela, não implica um modelo
económico preciso ou uma ideologia
determinada, pelo contrário, distanciase
dos que acreditam que este ou aquele
sistema económico são uma panaceia
eterna. 

Se alguém se sentir ofendido com
as minhas palavras, saiba que as exprimo
com estima e com a melhor das intenções,
longe de qualquer interesse pessoal ou
ideologia política”, escreve-se na Evangelii
Gaudium. “A mim, interessa-me apenas
procurar que quantos vivem escravizados
por uma mentalidade individualista,
indiferente e egoísta, possam libertarse
dessas cadeias indignas e alcancem
um estilo de vida e de pensamento mais
humano, mais nobre, mais fecundo, que
dignifi que a sua passagem por esta terra”.
O sucesso das economias modernas não
é apenas o sucesso da evolução técnica
ou das regras invisíveis do mercado. É
também, ou sobretudo, o sucesso do quadro
ético e moral que cria os estímulos certos
para preferirmos o tipo de instituições
políticas e sociais que suportam as nossas
sociedades progressivas (mesmo em
tempos de crise). O sucesso daquilo a
que chamamos capitalismo não deriva
do triunfo do individualismo ou de um
egoísmo centrado na satisfação de prazeres
e consumos imediatos, antes em princípios
morais que favorecem a cooperação e a
integração.

A tensão entre estes valores
sempre existiu e a Igreja nunca lhes foi
indiferente. Por isso o seu problema não é
com os empresários, cuja vocação Francisco
considera ser “uma nobre tarefa” desde
que se deixem “interpelar por um sentido
mais amplo da vida”, para assim servirem
“verdadeiramente o bem comum”.
O Papa não propõe qualquer revolução
política — mas interpela-nos a uma
revolução de comportamentos.

Não condena os ricos, mas desafi a-os à
compaixão e desafi a-os a agir. Como notou
Robert A. Gahl, professor na Universidade
Pontifícia de Roma, “para combater
a desigualdade e a marginalização,
Francisco não propõe uma redistribuição
socialista, antes o primado da compaixão e
da responsabilidade individual”.
Mais do que ser de esquerda ou
de direita, a sua mensagem é a do
cristianismo e do primado, na política e
na economia, da dignidade humana, algo
que já vem de Santo Agostinho ou de São
Tomás de Aquino. Sem surpresa, julgo eu,
podemos dizer que o Papa Francisco é,
antes de tudo o mais, católico.