Cultura

AVANÇOS TECNOLÓGICOS, CHIPS E O VELHO E BOM LIVRO, POR MARCO GAVAZZA

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| 10/11/2010 às 10:00
Na Primeira Guerra Mundial os canhões deixavam os artilheiros surdos
Foto: ARQUIVO

Estou lendo "Queda de Gigantes", de Ken Follett, primeiro livro de uma trilogia retratando o século 20, com mais dois volumes programados para lançamento em 2012 e 2014.  Este primeiro volume tem como cenário os primeiros anos do século passado, sendo observado pelo ponto de vista de cinco famílias, indo desde nobres ingleses até operários russos, passando por mineradores galeses e diplomatas norte-americanos. 


A ação se intensifica a partir de 1914, quando começa a 1ª Guerra Mundial.  Aí os caminhos começam a se entrelaçar e a trama ganha uma profundidade e conteúdo maravilhosos. Mas não se preocupem nem pensem que estou agora inventando de ser crítico literário; não é isso.  O que impressiona e me motiva a escrever esta coluna de hoje, é a gigantesca distância que percorremos neste século -apesar de ainda nele ter havido uma 2ª Guerra Mundial e incontáveis guerras localizadas- em relação ao avanço tecnológico, em todos os setores do desenvolvimento humano.  A cada momento a narrativa nos põe frente a frente com coisas surpreendentes e que parecem remontar a muitos, muitos séculos e não a menos de 100 anos.


Na mineração os processos são descritos em detalhes e é até engraçado imaginar os carrinhos de minério sendo puxados por pôneis através dos túneis, em função da pequena altura dos dois.  Ou mineiros utilizando lamparinas flamejantes para iluminar um ambiente altamente carregado de gás metano. Por mais protegidas e lacradas que elas fossem sempre provocavam pequenas explosões que apagavam as lamparinas deixando os mineiros na mais absoluta escuridão.  A tecnologia mostrada no desastre recente no Chile parece o futuro.


É espantoso ver como vivia a classe operária, sem rendimento para comprar qualquer coisa além da pouca comida e pagar o aluguel de dois cômodos onde se amontoava toda a família.  Uma gripe era possivelmente mortal. Mesmo a nobreza tinha lá suas limitações, com viagens que duravam semanas para cobrir poucos quilômetros, dada a precariedade das estradas e a fragilidade das carruagens. O sistema de aquecimento no inverno era igual ao dos pobres: um braseiro, mesmo que acondicionado numa monumental lareira.  


As comunicações se resumiam a cartas que demoravam semanas para chegarem aos seus destinos. Telégrafo somente em órgãos da administração pública e para assuntos de grande urgência. Telefone apenas nos gabinetes do primeiro escalão dos governos. A comunicação de massa se limitava aos jornais e cartazes afixados em praças, sempre ilustrados por desenhos ou caricaturas. A fotografia ainda não era um recurso disponível e simples, como em nossos celulares. 


Quando a narrativa entra na descrição do início e dos primeiros anos da Guerra Mundial (um somatório de interesses políticos que se aproveitou de uma desavença entra a Áustria e a Sérvia para iniciar a mortandade) é que percebemos a imensa distância tecnológica que percorremos em pouco tempo, desde a confecção manual de uniformes e botas ou a fabricação artesanal de rodas para locomotivas e vagões.


O trem era o único meio de transporte capaz de suportar grandes quantidades de tropas, mantimentos e munição. Assim, todos os países envolvidos no conflito precisaram aumentar muito a fabricação e montagem de trens. As rodas eram entalhadas em madeira, prensadas em um enorme recipiente com material argiloso formando moldes que depois eram preenchidos através de funis de madeira com o aço derretido. Horas depois, quando o metal esfriava, elas iam para um torno onde passavam por acabamento, ajuste e balanceamento manual.  Uma fábrica trabalhando em regime de tempo integral conseguia "fabricar" em média seis rodas por dia.


As armas eram de uma precariedade impressionante.  As mais destruidoras, as granadas e pequenas bombas lançadas por bazucas, tinham alcance limitado e eram absolutamente imprecisas. As metralhadoras eram mais eficientes, porém exigiam meia dúzia de soldados para operá-las e necessitavam de um espaço de tempo de uns três minutos para serem recarregadas, tempo este que era aproveitado pelo inimigo para correrem em direção à elas e tentar tomá-las praticamente a tapa, pois seus fuzis disparavam apenas dez tiros e a mais de 300 metros de distância era praticamente impossível acertar em alguma coisa que se movesse. Morte garantida do inimigo só mesmo cara a cara, com baionetas.


Os generais e oficiais de comando organizavam a movimentação das tropas praticamente por adivinhação, pois só era possível conhecer a posição e a direção dos batalhões inimigos sendo viável realizar sobrevôos de reconhecimento, quando os aviões não eram abatidos. Se tudo desse certo, depois que retornassem à base, os relatórios eram escritos, entregues a mensageiros que disparavam a cavalo em direção ao front com as informações. Caso não se perdesse, não fossem apanhados numa armadilha ou o cavalo não quebrasse uma perna no meio do caminho, finalmente o comando estratégico ficava sabendo onde estava o inimigo. Alguns dias antes, claro. Assim, um avanço de 10 km em território inimigo exigia um ano de batalhas.


Enquanto isso, longe dos campos e das trincheiras, quem estava nas cidades não tinha qualquer notícia do avanço dos combates, de quem estava vivo ou não. Além de sofrer terríveis dificuldades de sobrevivência, pois toda a produção de alimentos, roupas, bebidas etc. era destinada aos soldados.


É impressionante quando comparamos tudo isso que aconteceu entre 1914 e 1918, com a Guerra do Golfo, a operação "Tempestade no Deserto", ocorrida ainda no século 20, em 1990, apenas 70 anos depois. Pelo lado aliado, a guerra contou com inovadores equipamentos eletrônicos, principalmente os caças F-117, bombas guiadas a laser e mísseis teleguiados. O sistema de defesa iraquiano, acreditava-se que incluía armas químicas e biológicas.  O conflito durou três dias.  Pouco tempo depois, quando os Estados Unidos decidiram invadir o Iraque e tirar Sadam Hussain do mapa, o mundo inteiro assistiu os misseis Scud caindo sobre Bagdá pela televisão, ao vivo e cores, por mais gasta que seja esta expressão.  Detalhe: o soldado que apertava os botões estava a milhares de quilometros do alvo.


Dediquei toda esta coluna a falar sobre algo óbvio e que está no nosso dia a dia, nos Ipad, nos note book e outros avanços da evolução tecnológica acontecida no decorrer de um século.  Mas em nenhum outro meio de comunicação encontrei isto tão clara e humanamente bem descrito quanto num milenar e conhecido veículo: o livro.