Cultura

VENDA DIRETA AO CONSUMIDOR. ENTRE SEM BATER, POR MARCO GAVAZZA

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| 03/11/2010 às 09:06
O consumidor gosta de ser cativado por um vendedor bem treinado
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   A venda direta ao consumidor, através de representantes treinados, sempre existiu, tendo sido um dos setores mais fortes em diversos mercados varejistas, antes que surgissem "magazines", lojas de departamentos, supermercados etc. David Ogilvy antes de fundar a Ogilvy & Mather foi vendedor domiciliar de fogões. Durante um longo tempo os produtos Avon não eram encontrados em lojas, mas apenas vendidos de porta em porta.  As garrafinhas de Yakult (com lactobacilos vivos, coisa que me deixava muito intrigado) também só podiam ser compradas junto às vendedoras que andavam pelas ruas de São Paulo puxando uns carrinhos coloridos, de um tom alaranjado inconfundível.


  Existe até um filme maravilhoso chamado "De porta em porta" sobre a vida de Bill Porter (numa magistral interpretação de William Macy), americano nascido com uma paralisia cerebral, que criou limitações na sua fala e movimentos, como vendedor na Watkins Company. Primeiramente Bill é rejeitado pelas pessoas, mas ao fazer sua 1ª venda ele literalmente não parou mais. Por mais de 40 anos Bill caminhou 16 quilômetros por dia e tornou-se um verdadeiro amigo íntimo de seus clientes, participando inclusive de seus problemas ou festas.


  Para que o sistema door-to-door funcionasse bem, era indispensável que os vendedores recebessem não só treinamento, mas principalmente fortes estímulos à produtividade. Sobre estes estímulos, quero comentar dois cenários distintos, em épocas diferentes.  


  CENÁRIO 1: ANOS 70 (SÉCULO 20). Um dos meus primeiros empregos foi como desenhista dos anúncios veiculados nas famosas Páginas Amarelas da antiga LTB-Listas Telefônicas Brasileiras. Lá pude acompanhar de perto a verdadeira batalha por produtividade que era promovida pela empresa entre seus vendedores.  Alguns deles chegavam a ganhar três ou quatro vezes o seu salário fixo por mês, graças à comissão sobre vendas efetuadas. Sem falar nos prêmios como eletrônicos, eletrodomésticos, viagens etc.


  Naquela equipe o grande campeão era um carioca baixinho e gordinho, chamado Carlos Rossetti.  Ele desenvolveu uma técnica própria e ao entrar no escritório de um potencial comprador dos anúncios, agia como um bem treinado detetive da CIA ou FBI.  Com uma rápida olhada pelo ambiente, ele capturava detalhes que revelavam um pouco da personalidade do seu ocupante, como até hoje acontece. Se ele percebesse em algum canto um escudo de um time de futebol já engrenava "casualmente" um comentário sobre um jogo e em seguida se revelava surpreso com a "coincidência" de serem ambos torcedores do mesmo time.  Visse ele uma foto da família numa festa de aniversário e lá estava Rossetti falando sobre a maravilha que é a família, a riqueza que representam os filhos e por aí a fora.


  Um toco de charuto num cinzeiro, uma revista sobre cinema num canto da sala, uma miniatura da torre Eiffel sobre a mesa, tudo era um gancho para Rossetti abrir as portas da simpatia junto à sua "vítima".  Lá no fim da visita, depois de muita "identificação" entre os dois, Rossetti falava rapidamente sobre as Páginas Amarelas, estendia um contrato e saia da sala com a assinatura do seu novo amigo e cliente, além de -claro- muitos pontos para sua meta do mês.


   CENÁRIO 2: ANOS 10 (SÉCULO 21). Tarde de sábado, Salvador Shopping, lojas Americanas lotada e eu lá na seção de DVDs tentando encontrar algum bom filme por um preço razoável quando de repente uma voz feminina e pouco agradável invade toda a loja, em generosos decibéis, através do sistema interno de som.  Ela literalmente gritava coisas do tipo: "Vamos lá minha gente, quero mais entusiasmo, estou achando todo mundo muito devagar." Ou então: "Atenção pessoal, vamos correr atrás, hoje não podemos ter um desempenho fraco como o de ontem. Conto com vocês."


   Fiquei sem entender direito se ela estava falando comigo, pedindo que eu comprasse mais e mais produtos ou se era algum outro tipo de mensagem mal construída, estimulando, por exemplo, um melhor atendimento aos consumidores, que na realidade estava o pior possível.


   Depois de escolher meus DVDs e enfrentar 20 minutos de fila para pagar no único caixa em funcionamento naquela seção, tempo suficiente para ouvir dezenas de vez aquele mesmo comando, finalmente chegou a minha vez e perguntei à moça que atendia: "Do que esta voz está falando?" Ela me respondeu com a mais absoluta naturalidade: "É com o pessoal que oferece cartão de crédito da loja." 


  Lembrei imediatamente de Rossetti e sua técnica de fazer o potencial comprador sentir-se especial, único, amigo do vendedor e foi inevitável comparar com a verdadeira agressão a todo e qualquer método de venda existente naquela ação explícita e pública de incentivo aos promotores dos cartões de crédito da loja, gratuitos inclusive. 


  Qual consumidor se sentirá privilegiado por receber uma proposta para ter um cartão das Americanas, sabendo que ele é apenas um "X" a ser marcado numa planilha de vendas de um promotor que é compelido -literalmente- a empurrar o tal cartão a qualquer um que passe à sua frente?  Onde está o charme da venda, a sensação passada ao cliente dele ser especial, merecedor de uma cartão de crédito da loja sem maiores formalidades ou possuidor de um benefício que lhe dá certas exclusividades? 


   Tudo isso foi atropelado pela famigerada meta de vendas e o agressivo incentivo ao desempenho, que deveria acontecer no limite gerencial da empresa, tornou-se público e desacreditou o produto. Isto faz parte de um conjunto de exageros encontrados atualmente na comunicação, para fazer frente a uma competitividade cada vez maior num mercado de consumidores com renda limitada, fazendo com que a propaganda e a promoção de vendas sejam vistas a cada dia, com mais desconfiança.


  Os tempos evidentemente mudaram e não dá mais pra aplicar a técnica Rossetti em qualquer circunstância.  Mas existem formas mais inteligentes que gritar através de alto falantes: "Olha os otários aí, minha gente. Vamos empurrar cartão goela abaixo nessa galera".