Cultura

O TOMBAMENTO DO MARISTA E TAMBÉM DA MODERNIDADE, POR MARCO GAVAZZA

Marco Gavazza escreve sobre publicidade no BJá
| 02/09/2009 às 07:07
Ex-Colégio Marista do Canela: prédio comum, sem valor histórico e uma polêmica ridícula
Foto: BJÁ
 

Permitam-me mais uma vez sair do meu tema e meter a colher em assuntos outros. Sou ex-aluno do Colégio Nª. Sª. da Vitória, comandado pela ordem religiosa dos Irmãos Maristas e sempre conhecido em Salvador como o Marista.  Lá fiz o antigo curso científico e o primeiro pré-vestibular integrado ao 3º ano implantado na Bahia. Experiência que vale dizer foi extenuante.


Daquela época trago a lembrança de grandes mestres, como Agenor Almeida, que fazia do ensino da Língua Portuguesa um agradável bate-papo.  Ou Irmão Estanislau, que nos obrigava a fazer as provas escritas em papel quadriculado, determinando quantos quadradinhos à esquerda da margem deveriam ser deixados em branco antes de colocarmos nossos nomes e por aí afora, passando-nos assim de forma indireta o sentido de ordem determinante e inerente à Matemática. Foram vários e inesquecíveis mestres, da ordem religiosa ou não. 


Trago lembranças também de colegas que se tornaram grandes nomes no cenário baiano e nacional, como os irmãos Antonio Neto, Leur e Marcos Lomanto; o empresário Francisco Franco Barreto; Carlos Eduardo Luz Pessoa de Souza, grande engenheiro e empresário; Nelson Gesteira, talentoso artista plástico; arquitetos de enorme criatividade como Neylton Dórea e Antonio Caramelo; o pecuarista Maurício Jacobina, além de outros que seguiram seus rumos longe das notícias e dos quais restaram apenas lembranças. 


Lembro ainda de grandes atividades extracurriculares, como paquerar as meninas do Colégio Panamericano, do outro lado da rua; da memorável semana de homenagem a Shakespeare, num dos seus centenários de nascimento ou morte, sei lá mais; dos espetaculares cavalos-de-pau de Maurício Jacobina em sua Rural Willys sobre a quadra de basquete, quando chovia; de jornais murais com edições diárias; das maravilhosas Feiras das Nações. Enfim momentos marcantes, de uma forma ou de outra, na vida de quem está se preparando para a realidade do mundo, com suas armadilhas, desafios e surpresas.


Mas não consigo lembrar de nada que se refira à estrutura física do Marista que tenha me impressionado. Ainda hoje, quando vou lá de dois em dois anos para votar, tudo o que me encanta está apenas na memória.   Muito diferente do Mosteiro de São Bento, onde fiz o curso ginasial e cuja imponência e perenidade impregnadas de história emocionam até hoje.  Assim, não consigo entender esta polêmica em torno da venda das instalações físicas -na verdade o terreno- do Marista no Canela. Não há nada de concreto ali que justifique um tombamento. O que mereceu e ainda merece ser tombado são pessoas, patrimônio vivo andando pelo mundo ou que dele já se foram deixando marcas eternas. 


A história do Marista não está em suas paredes e escadas absolutamente comuns, mas na genialidade daqueles que lá ensinaram e de tantos que lá estudaram. Mais nada. Sua estrutura física foi alterada dezenas de vezes, ampliado pra lá, encurtado pra cá, reformado aqui, reconstruído ali. Desde a década de 60, quando lá estudei, que se construíam quadras, derrubavam muros, aumentavam salas, numa dinâmica constante destinada a acompanhar o crescimento da instituição.  Tombar o que?  Recordações pessoais, particulares? 


Existem dezenas de outros monumentos realmente históricos espalhados pela cidade, prestes a tornarem-se escombros, sem que se cogite qualquer providência. A Casa de Pedra da Boca do Rio, aonde os primeiros escravos chegados à Bahia ficavam confinados, foi transformada em restaurante, depois em night club e por fim desapareceu completamente da paisagem sem que qualquer lamento se ouvisse. Este é apenas um de incontáveis exemplos.


Impedir que se construa um moderno complexo residencial, empresarial e/ou comercial na área do Marista é não permitir a revitalização do Canela e todo o seu entorno, numa atitude deploravelmente recorrente na sociedade baiana que parece estar sempre disposta a deter o progresso sob a desculpa da preservação. Vide o caso da Mansão Wildberg, que não possuía rigorosamente nada de histórico e que deveria (sabe-se lá onde vai parar esta história) dar lugar a um empreendimento que valoriza o Largo da Vitória e sua magnífica visão da Baía de Todos os Santos, uma das últimas abertas ao público. Além de evidenciar a própria igreja da Vitória, que por sua vez já passou por diversas reformas, descaracterizando a construção original e abandonando a própria autenticidade histórica a ponto de perder direito ao tombamento.  A igreja não pode ser tombada, mas querem que a casa dos Wildberg seja.  Difícil de crer, mas é isso.


Preservar a história é uma coisa, impedir o progresso é outra. Cuidar dos nossos monumentos, das nossas igrejas, das nossas referências históricas é o que precisa ser feito, mas não acontece. Ordenar o crescimento da cidade também é indispensável, mas não ao preço da intolerância, da intransigência e de uma relativa ingenuidade.


O progresso é irreversível e de há muito já se instalou em Salvador desde ou até antes que o Iguatemi fosse inaugurado "naquele deserto perto da Rodoviária", provocando risos irônicos de todos os soteropolitanos.  O Salvador Shopping ocupou uma imensa área nobre, valorizando-a incalculavelmente e contrariando grupos que achavam o local mais adequado à criação de um parque público, enquanto o Parque Atlântico -Aeroclube- distante poucos quilômetros, não chegou sequer a ser construído como contrapartida do shopping por sua instalação absurda naquele trecho da orla: na praia.  A área hoje é só escombros.


Não consigo entender o sentimentalismo colonial de alguns conterrâneos, convivendo simultaneamente com o descaso absoluto pela cidade como um todo.  Sou canceriano e com tal, um ferrenho preservador do passado. Mas possuo o discernimento suficiente para saber que só vale a pena guardar na caixinha de recordações o ingresso de cinema que lembra o primeiro beijo trocado na escuridão amiga. Os outros são os outros.


O Marista está tombado na memória e nos álbuns de fotos de todos os que o construíram e mantiveram como um grande centro formador de cultura, moral caráter e ética. Nunca como um monumento histórico.  Afirmo isso com a permissão natural outorgada por quatro longos e preciosos anos vividos ali. 


Nada mais coerente a um lugar onde se preparam pessoas para o futuro que dar lugar ao próprio, prosseguindo com sua missão em outro espaço físico; pois este é o que menos importa em missões desta magnitude.