Cultura

CAPÍTULO XI DA NOVELA "UM TÁXI PARA O ALBANNY", POR MARCO GAVAZZA

Veja o penúltimo capítulo da novela
| 25/07/2009 às 23:43
Com o fim da guerra George abre uma casa de leilões, mas a sombra de Melissa o persegue
Foto: MC

CAP 11.

DEZEMBRO,  1949, WEST  END, LONDRES.

    

O Albany ainda  guardava um pouco de sóbria elegância, embora as reformas realizadas ao  final  da guerra houvessem tirado grande parte do seu charme. Para George Wesley, pouco importava o  charme perdido, o tempo perdido, o  sonho  perdido.

    

Importava agora apenas  o que  ele conseguiria  recuperar e entre algumas poucas coisas importantes, estava uma certa paz. Terminara a guerra,  terminara Melissa, terminaram  os alemães e os americanos, terminara até  Florence Dayse, que parecia jamais poder terminar. 

    

Após aquele dia de agosto na  Ave. Champs Elisées,  quando deixara Florence para trás  num quarto de hotel  em meio à  gritaria e à  Marselhesa, George  voltou  até  Pais de  Calais e de alguma forma o Canal da  Mancha durante a travessia da balsa, guardou em  suas águas escuras para  sempre, todas as suas infelizes  experiências, todos  os seus dias de agonia, toda  a  sua  vida mal vivida entre os braços, as pernas, os desejos e os caprichos de Florence Dayse e  Melissa  Vatumbí Nash. Todo o passado fugiu para a zona sombria e imprecisa das recordações, esperando a  poeira e o  tempo tomarem conta dele.

    

As bombas alemãs já não  soavam sequer em seus pensamentos. A guerra parecia uma coisa distante e da qual ninguém deveria lembrar.

George Wesley,  livre da dependência que em verdade o  tornara impotente, reconstruíra sua vida rapidamente. Abandonou o  ramo dos livros e  móveis usados, montando uma  casa de  leilões, que em  poucos anos  tornara-se das mais importantes da  cidade. George ganhara o suficiente  para retornar  ao Albany, comer refeições decentes e levar uma vida melhor que  antes da  guerra e de todos aqueles pesadelos.

 

A jovem The Wesley's House realizava  pregões duas vezes por semana e havia uma longa lista de pessoas inscrita para levar seus objetos  pessoais, jóias, obras de arte, móveis e toda espécie de bens, a leilão. O  fim de uma guerra  ajuda este tipo de  negócios,  pois enquanto  pessoas procuram  se desfazer do  pouco que conseguiram preservar para conseguir  dinheiro  e criar uma nova vida;  outras buscam reconstruir o  que restou de suas antigas vidas com  o pouco dinheiro que também restou. Os leilões portanto, conseguem deixar felizes  pessoas  que se desfazem de  coisas guardadas  e pessoas  que adquirem coisas  usadas.

 

A vida às vezes parece seguir a mesma lógica dos leilões, oferecendo migalhas de felicidade a quem imaginava nunca mais poder  sorrir e tirando de outros pedaços já inúteis de um passado sem qualquer possibilidade  de felicidade.

 

Não sabemos exatamente quando  alguma coisa pode significar felicidade ou quando ela simplesmente vem nos tirar uma paz  que desconhecíamos possuir. Existe um instante  em que as coisas perdem seus contornos reais, ficam difusas e na luz da  tarde, naquele momento  em que  não é  dia  nem  é noite, podemos ver  tudo  da forma que queremos  ver,  o que entretanto não significa alterar a natureza de nada.  Quando  a luz  da manhã volta a estabelecer limites exatos, linhas,  cores, formas e movimentos definidos, aí então, e só aí, saberemos  se encontramos a felicidade ou perdemos  um pouco  dela.

 

George Wesley nunca  soube na verdade o que pensar sobre tudo  o que  a guerra  lhe trouxera. Os fatos sempre subiram  os  72  degraus da escadaria do Albany para bater em  sua  porta. Seu  erro talvez tenha  sido permitir que todos eles entrassem, que todos eles se  instalassem em  sua  cama e  pior que tudo,  deixar  que daí eles ocupassem  o  seu  coração.

 

"On the sunny side  of street, just walking, in the sunny side..."  

 

Que tolice. A canção que  ocupava o ar do velho  apartamento trazia uma lógica inegável, mas inadmissível para George  Wesley.  Haveria sempre um  lado  ensolarado e  um  outro  sombrio da mesma rua, é claro. Mas não  há a obrigatoriedade de se caminhar  pelo  lado  sombrio, existindo sempre a opção de se  atravessar a rua e seguir pelo lado cálido. Talvez George nunca tivesse  percebido isto ou  no fundo temesse  atravessar a rua.

 

De qualquer forma, tudo estava acabado. Nunca nada demorara tanto  para chegar a um  final, mas acabou. Acabou  quando Florence Dayse sumiu com  os americanos  idiotas,  acabou  quando o  teto do  apartamento em  Tooley Street destruiu o que um dia  fora Melissa  e acabou mais  uma  vez quando deixou para  trás Florence Dayse e aquele quarto  deserto  de um  hotel  arruinado em  Montparnasse.

 

Merda de guerra,  Paris idiota.  

 

George Wesley deixou que os últimos  acordes da melodia desaparecessem do quarto do seu  apartamento e fechou os olhos lentamente. Procurava pensar  em seus novos  negócios, afastando da mente  todas as  recordações inúteis. Estava satisfeito com sua casa de leilões. Fora uma  boa  idéia. Pouco tempo  após o fim da guerra e ele já  estava ganhando um bom dinheiro,  o que nunca  pudera imaginar. Enquanto as bombas alemãs estiveram caindo por perto, ele sempre evitara pensar no  que iria fazer quando tudo acabasse. 

 

No fundo, tinha tanto medo da paz quanto da  guerra. Não conseguia pensar  em como iria  viver,  sem economias, sem mais  nada dos  seus livros  e  dos móveis velhos para vender.  Quando cessasse a guerra,  o  país precisaria ser reconstruído, iam  ser necessários braços  jovens para reerguer cidades, cabeças com habilidade para as finanças, capazes de  descobrir formas de  recuperar  a energia, médicos para cuidar das  pessoas estressadas, mal  alimentadas, feridas  no  corpo  e na  alma, agricultores  para ressuscitar o  campo.

 

Ninguém  iria precisar de nada que um homem já velho, cansado e deprimido pudesse oferecer, muito menos livros e  móveis velhos.

 

Por  isso  ficou extremamente surpreso  ao ver a quantidade de pessoas que apareceu  para fazer  ofertas  pelos poucos  móveis  que sobraram entre  os  escombros de  sua loja e que ele resolveu leiloar.

 

Percebeu então que ali  estava sua oportunidade  e criou a casa de  leilões. Assim  pode recuperar um  pouco  do seu padrão antigo de  vida e  até voltar a morar no Albany. Nunca mais alugara companhias para  suas noites, não apenas porque se sentia cansado demais para os embates sexuais, mas principalmente porque isto  sempre lhe traria de volta a  lembrança de Florence  Dayse.

 

Fora ela que lhe abrira as portas para as amplas possibilidades permitas pelo corpo humano para  que se conheça o prazer e a mais completa sensação de liberdade possível de ser experimentada.

 

Aqueles minutos em que todo o universo se resume a seios, coxas, suores, penetrações, murmúrios, fendas, respiração entrecortada e olhos semicerrados, não possuem paralelo em qualquer outro momento da vida, pois que todas as outras sensações de  liberdade estão invariavelmente ligadas a situações vividas, enquanto no sexo esta liberdade maior  vem sem qualquer compromisso com  a realidade  cotidiana, o  ambiente, as situações.

 

É uma liberdade plena e incondicional.

 

Florence Dayse levara George Wesley pelas  mãos até os limites deste paraíso, quando  ele já não pensava ser isto possível. Não satisfeita, enviara Melissa para completar todos os rituais de  iniciação celestial acrescentando  o  entusiasmo único da  juventude.

 

Mas como a liberdade e o  paraíso são fugidios, George Wesley tentou preencher  o  tempo entre suas idas ao paraíso  com um vago sentimento,  uma emoção  indefinida  que ele insistia em chamar de  amor, como se este existisse num plano superior e não apenas como  um artifício criado  pelos poetas, pelos  romancistas,  pelos jovens  entusiasmados com qualquer coisa, para amenizar o desgaste do dia a dia  em  épocas normais.

 

O tempo indiferente e a realidade extremamente cruel da  guerra trataram de fazer com que George Wesley passasse de oscilar  constantemente entre o céu e  o  inferno até  parar  apontando exatamente para o nada.

 

Depois disto e de todos aqueles outros fatos insistentemente recentes,  George  Wesley preferia deixar tudo  na memória, como um  tesouro perpetuado, lembrança real de  um  tempo que  não existiu, de  um tempo  irreal. Seus dias voltaram a uma  rotina civilizada e britânica.

 

Continuava buscando  os  restaurantes do momento, indo ao teatro e às corridas eventualmente, mas sempre só.

 

A casa de leilões ocupava o seu  tempo  e o  seu  entusiasmo, não só  pelo  dinheiro que  lhe permitia ganhar,  mas também pela diversidade de observações que dela podia fazer. A alma e a natureza humanas se revelavam aos poucos nos pregões e  deixavam entrever a  infinidade de variações de personalidades a  que estamos  expostos quando nos  envolvemos com  outros seres humanos, seja lá  em que  plano  for.  

 

George Wesley passou a observar atentamente os rostos que faziam  ofertas diante de um aparelho de  jantar, uma poltrona ou um sabre enferrujado, descobrindo neles mais que  a  necessidade de um objeto qualquer, mas sempre  a necessidade de estabelecer um relacionamento ao  criar uma situação de confronto,  de disputa.

 

Ali surgiram amizades, casamentos, sociedades,  como surgiram  rivais e até inimigos. O  leilão era na verdade uma  grande sessão de terapia grupal, regida por um código próprio e não escrito, mas que todos conheciam  e praticavam. Cada mão que acenava elevando uma oferta,  chamava a atenção de todos e criava  sentimentos novos.

 

A vaidade levava um açucareiro ao patamar de uma obra de arte e gerava imediatamente a frustração do adversário  e a admiração o u desprezo  dos que não podiam  ou  queriam acompanhar  aquela espécie de guerra.  Ele próprio percebeu lentamente que passara todos os dias de sua vida até  aquele  momento, sem disputar nada.

 

Recluso por toda a vida em  sua fortaleza no Albany, jamais ouvira alguém declara-lo vencedor em um lance qualquer.

 

Dou-lhe uma,  dou-lhe duas,  dou-lhe  três, vendido para aquele  senhor que matou a puta numa noite de bombardeio.

 

Meu Deus. Aquela noite  jamais iria  desaparecer de sua  mente, como  todas as  outras  coisas,  que a cada dia se tornavam mais distantes e  menos cortantes.  Aquela noite não fora irreal como as idas ao paraíso ou  como a guerra travada por  um  açucareiro. Naquela fração ínfima do tempo, uma bala e  um  míssil se uniram  para tecer uma  situação dilacerante, que  fizera de  George Wesley  um  prisioneiro de seu  crime e de uma pergunta que jamais calara,  pois não conseguia imaginar  se Melissa teria morrido de  qualquer forma, mesmo que ele  não  houvesse  disparado.

 

Por vezes imaginava isto, como forma de  acalmar sua  consciência.

 

Outras vezes pensava o  contrário, que se tivesse puxado  Melissa para cima de  seu corpo, ela estaria viva.  Mas, se estivesse viva,  ele ainda estaria ?

 

Teria sobrevivido à crueldade natural dos jovens  ou pior  ainda, teria sobrevivido à inevitável saída de  Melissa  de sua vida, logo que acabasse a  guerra  e ela voltasse  a  buscar outros caminhos ?