CAP 11.
DEZEMBRO, 1949, WEST END, LONDRES.
O Albany ainda guardava um pouco de sóbria elegância, embora as reformas realizadas ao final da guerra houvessem tirado grande parte do seu charme. Para George Wesley, pouco importava o charme perdido, o tempo perdido, o sonho perdido.
Importava agora apenas o que ele conseguiria recuperar e entre algumas poucas coisas importantes, estava uma certa paz. Terminara a guerra, terminara Melissa, terminaram os alemães e os americanos, terminara até Florence Dayse, que parecia jamais poder terminar.
Após aquele dia de agosto na Ave. Champs Elisées, quando deixara Florence para trás num quarto de hotel em meio à gritaria e à Marselhesa, George voltou até Pais de Calais e de alguma forma o Canal da Mancha durante a travessia da balsa, guardou em suas águas escuras para sempre, todas as suas infelizes experiências, todos os seus dias de agonia, toda a sua vida mal vivida entre os braços, as pernas, os desejos e os caprichos de Florence Dayse e Melissa Vatumbí Nash. Todo o passado fugiu para a zona sombria e imprecisa das recordações, esperando a poeira e o tempo tomarem conta dele.
As bombas alemãs já não soavam sequer em seus pensamentos. A guerra parecia uma coisa distante e da qual ninguém deveria lembrar.
George Wesley, livre da dependência que em verdade o tornara impotente, reconstruíra sua vida rapidamente. Abandonou o ramo dos livros e móveis usados, montando uma casa de leilões, que em poucos anos tornara-se das mais importantes da cidade. George ganhara o suficiente para retornar ao Albany, comer refeições decentes e levar uma vida melhor que antes da guerra e de todos aqueles pesadelos.
A jovem The Wesley's House realizava pregões duas vezes por semana e havia uma longa lista de pessoas inscrita para levar seus objetos pessoais, jóias, obras de arte, móveis e toda espécie de bens, a leilão. O fim de uma guerra ajuda este tipo de negócios, pois enquanto pessoas procuram se desfazer do pouco que conseguiram preservar para conseguir dinheiro e criar uma nova vida; outras buscam reconstruir o que restou de suas antigas vidas com o pouco dinheiro que também restou. Os leilões portanto, conseguem deixar felizes pessoas que se desfazem de coisas guardadas e pessoas que adquirem coisas usadas.
A vida às vezes parece seguir a mesma lógica dos leilões, oferecendo migalhas de felicidade a quem imaginava nunca mais poder sorrir e tirando de outros pedaços já inúteis de um passado sem qualquer possibilidade de felicidade.
Não sabemos exatamente quando alguma coisa pode significar felicidade ou quando ela simplesmente vem nos tirar uma paz que desconhecíamos possuir. Existe um instante em que as coisas perdem seus contornos reais, ficam difusas e na luz da tarde, naquele momento em que não é dia nem é noite, podemos ver tudo da forma que queremos ver, o que entretanto não significa alterar a natureza de nada. Quando a luz da manhã volta a estabelecer limites exatos, linhas, cores, formas e movimentos definidos, aí então, e só aí, saberemos se encontramos a felicidade ou perdemos um pouco dela.
George Wesley nunca soube na verdade o que pensar sobre tudo o que a guerra lhe trouxera. Os fatos sempre subiram os 72 degraus da escadaria do Albany para bater em sua porta. Seu erro talvez tenha sido permitir que todos eles entrassem, que todos eles se instalassem em sua cama e pior que tudo, deixar que daí eles ocupassem o seu coração.
"On the sunny side of street, just walking, in the sunny side..."
Que tolice. A canção que ocupava o ar do velho apartamento trazia uma lógica inegável, mas inadmissível para George Wesley. Haveria sempre um lado ensolarado e um outro sombrio da mesma rua, é claro. Mas não há a obrigatoriedade de se caminhar pelo lado sombrio, existindo sempre a opção de se atravessar a rua e seguir pelo lado cálido. Talvez George nunca tivesse percebido isto ou no fundo temesse atravessar a rua.
De qualquer forma, tudo estava acabado. Nunca nada demorara tanto para chegar a um final, mas acabou. Acabou quando Florence Dayse sumiu com os americanos idiotas, acabou quando o teto do apartamento em Tooley Street destruiu o que um dia fora Melissa e acabou mais uma vez quando deixou para trás Florence Dayse e aquele quarto deserto de um hotel arruinado em Montparnasse.
Merda de guerra, Paris idiota.
George Wesley deixou que os últimos acordes da melodia desaparecessem do quarto do seu apartamento e fechou os olhos lentamente. Procurava pensar em seus novos negócios, afastando da mente todas as recordações inúteis. Estava satisfeito com sua casa de leilões. Fora uma boa idéia. Pouco tempo após o fim da guerra e ele já estava ganhando um bom dinheiro, o que nunca pudera imaginar. Enquanto as bombas alemãs estiveram caindo por perto, ele sempre evitara pensar no que iria fazer quando tudo acabasse.
No fundo, tinha tanto medo da paz quanto da guerra. Não conseguia pensar em como iria viver, sem economias, sem mais nada dos seus livros e dos móveis velhos para vender. Quando cessasse a guerra, o país precisaria ser reconstruído, iam ser necessários braços jovens para reerguer cidades, cabeças com habilidade para as finanças, capazes de descobrir formas de recuperar a energia, médicos para cuidar das pessoas estressadas, mal alimentadas, feridas no corpo e na alma, agricultores para ressuscitar o campo.
Ninguém iria precisar de nada que um homem já velho, cansado e deprimido pudesse oferecer, muito menos livros e móveis velhos.
Por isso ficou extremamente surpreso ao ver a quantidade de pessoas que apareceu para fazer ofertas pelos poucos móveis que sobraram entre os escombros de sua loja e que ele resolveu leiloar.
Percebeu então que ali estava sua oportunidade e criou a casa de leilões. Assim pode recuperar um pouco do seu padrão antigo de vida e até voltar a morar no Albany. Nunca mais alugara companhias para suas noites, não apenas porque se sentia cansado demais para os embates sexuais, mas principalmente porque isto sempre lhe traria de volta a lembrança de Florence Dayse.
Fora ela que lhe abrira as portas para as amplas possibilidades permitas pelo corpo humano para que se conheça o prazer e a mais completa sensação de liberdade possível de ser experimentada.
Aqueles minutos em que todo o universo se resume a seios, coxas, suores, penetrações, murmúrios, fendas, respiração entrecortada e olhos semicerrados, não possuem paralelo em qualquer outro momento da vida, pois que todas as outras sensações de liberdade estão invariavelmente ligadas a situações vividas, enquanto no sexo esta liberdade maior vem sem qualquer compromisso com a realidade cotidiana, o ambiente, as situações.
É uma liberdade plena e incondicional.
Florence Dayse levara George Wesley pelas mãos até os limites deste paraíso, quando ele já não pensava ser isto possível. Não satisfeita, enviara Melissa para completar todos os rituais de iniciação celestial acrescentando o entusiasmo único da juventude.
Mas como a liberdade e o paraíso são fugidios, George Wesley tentou preencher o tempo entre suas idas ao paraíso com um vago sentimento, uma emoção indefinida que ele insistia em chamar de amor, como se este existisse num plano superior e não apenas como um artifício criado pelos poetas, pelos romancistas, pelos jovens entusiasmados com qualquer coisa, para amenizar o desgaste do dia a dia em épocas normais.
O tempo indiferente e a realidade extremamente cruel da guerra trataram de fazer com que George Wesley passasse de oscilar constantemente entre o céu e o inferno até parar apontando exatamente para o nada.
Depois disto e de todos aqueles outros fatos insistentemente recentes, George Wesley preferia deixar tudo na memória, como um tesouro perpetuado, lembrança real de um tempo que não existiu, de um tempo irreal. Seus dias voltaram a uma rotina civilizada e britânica.
Continuava buscando os restaurantes do momento, indo ao teatro e às corridas eventualmente, mas sempre só.
A casa de leilões ocupava o seu tempo e o seu entusiasmo, não só pelo dinheiro que lhe permitia ganhar, mas também pela diversidade de observações que dela podia fazer. A alma e a natureza humanas se revelavam aos poucos nos pregões e deixavam entrever a infinidade de variações de personalidades a que estamos expostos quando nos envolvemos com outros seres humanos, seja lá em que plano for.
George Wesley passou a observar atentamente os rostos que faziam ofertas diante de um aparelho de jantar, uma poltrona ou um sabre enferrujado, descobrindo neles mais que a necessidade de um objeto qualquer, mas sempre a necessidade de estabelecer um relacionamento ao criar uma situação de confronto, de disputa.
Ali surgiram amizades, casamentos, sociedades, como surgiram rivais e até inimigos. O leilão era na verdade uma grande sessão de terapia grupal, regida por um código próprio e não escrito, mas que todos conheciam e praticavam. Cada mão que acenava elevando uma oferta, chamava a atenção de todos e criava sentimentos novos.
A vaidade levava um açucareiro ao patamar de uma obra de arte e gerava imediatamente a frustração do adversário e a admiração o u desprezo dos que não podiam ou queriam acompanhar aquela espécie de guerra. Ele próprio percebeu lentamente que passara todos os dias de sua vida até aquele momento, sem disputar nada.
Recluso por toda a vida em sua fortaleza no Albany, jamais ouvira alguém declara-lo vencedor em um lance qualquer.
Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três, vendido para aquele senhor que matou a puta numa noite de bombardeio.
Meu Deus. Aquela noite jamais iria desaparecer de sua mente, como todas as outras coisas, que a cada dia se tornavam mais distantes e menos cortantes. Aquela noite não fora irreal como as idas ao paraíso ou como a guerra travada por um açucareiro. Naquela fração ínfima do tempo, uma bala e um míssil se uniram para tecer uma situação dilacerante, que fizera de George Wesley um prisioneiro de seu crime e de uma pergunta que jamais calara, pois não conseguia imaginar se Melissa teria morrido de qualquer forma, mesmo que ele não houvesse disparado.
Por vezes imaginava isto, como forma de acalmar sua consciência.
Outras vezes pensava o contrário, que se tivesse puxado Melissa para cima de seu corpo, ela estaria viva. Mas, se estivesse viva, ele ainda estaria ?
Teria sobrevivido à crueldade natural dos jovens ou pior ainda, teria sobrevivido à inevitável saída de Melissa de sua vida, logo que acabasse a guerra e ela voltasse a buscar outros caminhos ?