1) Você é um artista cuja criação, ou mesmo por um valor existencial, busca estudo e pesquisa na elaboração de sua arte. Tendo como ponto de partida este raciocínio:
a) Há um entendimento ou consciência desta sua busca "cultural" dentro de sua criação?
Eu pertenço a uma geração que testemunhou uma mudança de paradigmas em muitos setores da vida contemporânea ocidental. Vivemos os "Anos de Chumbo" do período militar aqui no Brasil, assistimos a polarização ideológica do mundo com as tensões da "Guerra Fria"; vimos a derrubada do muro de Berlim, construímos um novo senso comportamental pelas vias da contracultura, assistimos a verticalização da ciência e da tecnologia tendo como conseqüência a mais espetacular transformação dos padrões comunicativos da história humana que é a Internet, usufruímos como nunca do fluxo das viagens, unimo-nos à economia globalizada, etc. Todos estes são fatores que implicam numa mudança do homem contemporâneo, e, um artista, para mim deve ser alguém reativo ao que ocorre no mundo, e neste sentido sua obra deve ser revestida de um repertório que se não elucide, aborde questões pertinentes à sua própria época. O perfil do artista, hoje, é muito diferente das características romantizadas do século dezenove e também dos conceitos e ideações do modernismo. Portanto ao menos para os meus discernimentos, produzir arte demanda uma atualização de repertórios interdisciplinares como estratégia mesmo de sobrevivência, numa sociedade que adquiriu novas complexidades.
b) Até que ponto esta verticalidade intensa influencia o seu fazer?
A cultura é uma questão medular para o meu trabalho. Eu não produzo "visualidades" para efeito exclusivo da contemplação. Aliás, as "visualidades" que construo não são exclusivamente visuais. Antes, buscam operar com sentidos de diferentes origens que são subvertidos para novas funções de significado. Tomemos como exemplo um trabalho que pertence ao acervo do Museu de Arte Moderna da Bahia, um piano de cauda suprimido em sua largura e funções percussivas. É um objeto reconhecível pela sua beleza solene que é próprio de um piano de cauda. No entanto é de profunda estranheza por ser oco e inútil, pois reverbera um ruído ou significado estranho que não pertence ao piano de cauda como o conhecemos. Reconhecemos ali o piano, mas há algo de um sentido estranho que não mais pertence a ele, algo como o "Sentido Obtuso" de Roland Barthes, algo insistente como presença, mas de difícil captação. Ele é fruto de um baralhamento de signos, ele é também um esquife, no vazio que expõe. O piano é antes de tudo um instrumento que guarda muito do simbólico da cultura ocidental, mas se ele cumpre outro papel simultaneamente, o papel de esquife, significa uni-lo a outros sensos de afirmação cultural tais como morte da cultura, ou morte da arte, ou o fim história, etc.
c) Há algum temor nesta busca de que o sentimento ou o excesso dele, ou da emoção, não sejam bons conselheiros para a criação artística?
Para ser sincero eu não estou certo da aplicabilidade do conceito de sentimento no meu trabalho em quaisquer das instâncias processuais quando os elaboro. O que me importa são os critérios que uso, as decisões que tomo para atingir um objetivo que para o artista nunca é decisivo, tão pouco definitivo. Algo pode ser decidido numa obra e negado noutra. O artista lida com possibilidades de significados que podem ou não abrir uma cadeia de sentidos. Produzir arte é uma aventura no vazio, e se torna imprescindível a atenção racional de suas escolhas aliada a um sentido de oportunidade sobre o inteligível. O sentimento, se este houver, é um efeito que vai pertencer ao espectador.
2) Vindo da pergunta acima, o que há da tradição, do encontro com esta, na arte que você faz? E, acrescento, quem desta história cultural são suas influências? Ou quais são os de sua empatia ou gosto?
Eu mantenho um exercício constante no exame das velhas tradições da arte, especialmente em relação à Alta Idade Média e Renascença. Talvez seja um sintoma, visto que se trata historicamente de um período de transições profundas que as sociedades daqueles tempos sofreram, além, claro, de buscar no escopo histórico a origem do que compreende um desenho da construção do individuo moderno É possível que esse meu interesse seja, grosso modo, uma forma comparativa de vislumbrar por analogia as transformações que vivemos hoje. De modo específico, no meu trabalho, eu sustento a manutenção de mídias tradicionais, como o desenho e a pintura, adaptando-as a narrativas e sensos contemporâneos. Mas é preciso reforçar que faço isso levando em conta que estamos numa época em que a arte se ampliou nas suas funções e vive de maneira intensa a quebra paradigmática pelas técnicas de sua reprodutibilidade, alusão ao texto de Walter Benjamin, A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, com as presenças da fotografia e do cinema e, mais recentemente, das conhecidas mídias eletrônicas como o suporte que já caracteriza a arte de hoje. Quanto a nominar influências específicas, hoje em dia não faz mais sentido, pois os meus interesses são muito pulverizados e meu trabalho hoje tem uma natureza de dependência direcionada mais para as disciplinas extra-arte, excetuando-se aí teorias da arte.
3)Há no seu trabalho uma grande preocupação com o "humano". O que a realidade que o circunda está refletida na sua obra?
O "humano" se faz presente pela interface de sua produção cultural. Na verdade eu não estou interessado na realidade vivencial, particularizada, ou enquadrada numa forma representacional do indivíduo que sou. Antes, eu preciso saber por que, e o que sou eu dentro das dinâmicas sociais nas quais estou envolvido. Interessam-me, assim, as abstrações que a cultura promove. Eu extraio daí as minhas narrativas, que são tentativas de traçar uma espécie de perfil baseado numa confrontação das diferentes formas expressas em diferentes sociedades, incluindo aí a própria cidade onde vivo.
4) Esta "realidade" traz no seu desenho um grande humor, ironia, crítica social. Esta é sua assinatura para o que vê como um trabalho criativo seu? Quais seriam outros fatores? Mas estes não sendo, ou se assim o forem, há outros que você detecte como sendo bem pessoal de sua obra?
A ironia é uma ferramenta de inegável apelo comunicativo e necessariamente não demarca um sentido de valor, seja depreciativo, ou de algo aceitável. Sua presença vem como um reforço dialético entre minha ação e o olhar do espectador. Quando eu construo um óculo (uma só lente) com pernas Ray-Ban, e a inscrição "Polifemo", faço uma junção da antiga cultura grega e seu mítico ciclope cego por Ulisses, com o padrão consumista de nossa sociedade. Trata-se de um discurso sobre duas espécies de cegueira, é um jogo, uma brincadeira através da cultura que delineia algumas características inquietantes em ambas. Quando desenho Hércules encapuzado pela sua peliça do leão de Neméia, junto com Batman, com sua peliça de morcego, e inscrevo ao lado das imagens "A Continuing Pathology", trata-se do mesmo jogo lúdico com a perversão idêntica dos dois heróis míticos separados por quatro mil anos. Uma tela pintada por um tecido onomatopéico, "Bang Bang", entremeado pela canção "Samba do Avião" de Tom Jobim e, revelando sutilmente o perfil do "Pão de Açúcar", desfralda uma ironia de valor de crítica social, que resvala para o humor negro. Estas são algumas das estratégias que em linhas gerais caracterizam meu trabalho como algo formalmente pulverizado, mas que adquire certa unidade pelas características de enquadramento conceitual que em alguma medida o particulariza.
5) A arte que você faz traz com ela uma sensibilidade ou sentimento de época, de aqui e agora?
Claro, a própria natureza fragmentária ou pendor para a desconstrução, o baralhamento de referências ou o que Baudrillard chama de agnosticismo estético são atributos que me parecem estar em conjunção com as características de nossa época. Eu comecei minha carreira, ainda sob a égide dos consensos do ideário modernista. Fazer arte implicava numa liberdade de ação circunscrita a uma geografia definida por enquadramentos conceituais que delineavam a forma como você agia dentro do mundo esteticamente. Talvez por uma questão geracional, que empunhava o desejo muitas vezes inconsciente de quebrar as referências em muitos setores da vida, explique uma série de incompreensões sofridas a partir do meu trabalho. Lembro-me de ter sido postulante a uma bolsa para a Universidade de Nova York em 1980, meu examinador se chamava Louis Finkelstein, um respeitado crítico de arte norte-americano, responsável nada mais nada menos pelo lançamento da carreira do pintor De Kooning. Era impossível para ele absorver num artista como eu, com uma obra corrente de cunho neoexpressionista, ter dedicado alguns anos dos meus poucos 30, envolvido com uma produção polarizada dentro de gestões minimalistas. Aquilo lhe soava como uma nódoa incompreensível. Tal esquizofrenia não era permitida. Vale lembrar que Philip Guston, da mesma geração de Finkelstein, foi um dos pintores seminais do Expressionismo Abstrato americano e, quando Guston, por uma necessidade interna de uma verdade pictórica rompe com action painting e parte para as narrativas de figuração livre, discutindo as questões da cultura americana, caiu em desgraça perante o meio de arte. Só foi recuperado vinte anos depois pela geração de críticos e artistas dos anos 80 que, como eu, o escolheu como mito temático. Uso estes exemplos para situar a demanda de esforço que fazer arte requer. O aqui e agora que você se refere pode ter níveis diferenciados de acuidade que conseqüentemente relativizam o olhar para o qual o artista se dirige. O fato de viver numa cidade deslocada da cultura planetária, e num país periférico, não mais retira o artista da condição de pertencimento em relação às constelações culturais mais sofisticadas, e aqui é onde reside o meu interesse do aqui e agora, no desejo de localizar que representatividade nós temos, e de que forma podemos dar o contributo de uma possível construção ética, no sentido ontológico, ou, ao menos, identificar as armadilhas sutis que o mundo de hoje com sua sofisticação constrói nas relações de cultura e poder.
6) Onde entra a memória - afetiva, histórica, social, política, cultural - na criação de seu trabalho?
Entram como cerne de uma ânsia. Aliás, há pouco você me indagava sobre sentimento, que eu insisto em não classificá-lo como componente do meu processo de trabalho, mas para ser mais preciso, se existe um sentimento, este entra como elemento que precede, ou ao menos justifica este estado de desejo ou necessidade de fazer o que faço, e o faço usando estes imbricamentos ou fluxos que dimensionam qualquer existência consciente. Todos estes são fatores que hoje constituem presença no meu trabalho como elementos de discurso. E foram adquirindo espaços ao longo de minha trajetória na medida em que me elaborei como pessoa e como artista, coisas aliás indistintas no meu estilo de vida pessoal. Minha ação como artista quase não guarda distância ou distinção do homem político e social que sou. A consciência de alguma representatividade para efeito de gerações subseqüentes à minha ajudaram-me a corroborar uma especificidade funcional no meio onde vivo e produzo, justamente por alinhavar tais fatores, tornando sua importância mais clara e contribuindo assim para ampliar a qualidade desta consciência, que afinal é o instrumento principal para a construção do indivíduo e sua relação com o social, o político, o cultural.