ENTREVISTA DE LILIANA PEIXINHO COM O ESCRITOR RONIWALTER JATOBÁ

Liliana Peixinho
18/05/2023 às 10:08
O Olhar detalhado, observador, de escritor que, como jornalista, apura fatos, faz a escrita de Roniwalter Jatobá se movimentar em cenários cinematográficos, onde sagas nordestinas, por exemplo, compõem histórias em ambientes desumanos de labuta dos trabalhadores em centros urbanos como São Paulo.

Liliana Peixinho -- Em uma crítica no blog " Salve, Cesar"  do colega jornalista Elieser Cesar, ele escreveu: "A classe operária não vai ao paraíso” – onde faz uma costura sobre seu trabalho como cronista da exploração do proletariado. No texto de Elieser Cesar há uma informação de que foi Amando Fontes, em Os Corumbas, romance de 1933, que introduziu a fábrica/exploração operária, na literatura. Só depois de quase 50 anos surge você e sua obra para aprofundar, reportar a exploração do operário com detalhes sobre as agruras no ambiente de trabalho. Ao longo de décadas e ampliação do trabalho operário como você observa essa literatura no Brasil?

Roniwalter Jatobá – Grande sacada de Elieser Cesar. Imediatamente, o jornalista nos remete à Itália das décadas de 1950, 1960 e 1970, quando o cinema daquele país revelou nas telas a miséria do seu povo após a Segunda Grande Guerra (1939-1945) e os dilemas da classe trabalhadora. Era o movimento conhecido como neorrealismo e que teve como expoentes, entre outros, Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti. E, claro, o cineasta Elio Petri que dirigiu o filme A classe operária vai ao paraíso, de 1971. Elieser tem razão. A classe trabalhadora, pelo menos a que conheci nas periferias paulistanas e retratei em minha obra, não havia chegado nem ao purgatório.

     Na verdade, sempre defendo a tese do escritor Luiz Ruffato, que mostra que o operário, como personagem, foi pouco retratado na literatura brasileira. Segundo ele, antes dos meus textos, que saíram em livros como Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura, 1976), Crônicas da vida operária (Finalista do Prêmio Casa das Américas 1978, em Cuba), Paragens (Finalista do Prêmio Jabuti 2005, São Paulo), Cheiro de chocolate e outras histórias (Prêmio Jabuti 2013) e Alguém para amar a vida inteira, o trabalhador urbano só podia ser entrevisto em um que outro romance – O cortiço, de Aluísio Azevedo, de 1890, Os Corumbas, de Amando Fontes, de 1933, O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, de 1935 – ou em um que outro conto – de autores como Mário de Andrade e Alcântara Machado. Por que isso acontece? Talvez porque entre muitos escritores, em geral oriundos da classe média ou rica, poucos viveram a experiência operária. Ou seja, morar na periferia e trabalhar numa fábrica. De acordo com o poeta Ruy Espinheira, em resenha sobre Contos Antológicos, publicada em A Tarde (Salvador, 18/7/2009) “escrevo sobre a vida que conheci como nordestino migrante, motorista de caminhão, trabalhador de construção civil e fábrica, buscando condições melhores em São Paulo. Não tive nenhuma intenção de tratar cientificamente fatos e personagens, não levantei teses sociais. Minha partida, claro, foi a experiência real, porém não escrevi como historiador, antropólogo ou sociólogo, muito menos cultivando correções políticas – e sim como escritor.”
 
Liliana Peixinho -- Tempos atrás escrevi sobre um "êxodo ao contrário", ao observar que muitos nordestinos estão retornando às suas origens. Cenário acentuado, principalmente na pandemia, com seus efeitos no desemprego.  Podemos dizer, como jornalistas, que a literatura tem campo para escrever sobre a proliferação de histórias/personagens como Tiziu?

Roniwalter Jatobá –- Há realmente hoje um retorno significativo de -migrantes para a terra natal. Em muitos setores, houve avanços no Nordeste, como na Educação e nas frentes de mão-de-obra e isso atraiu muitos de volta. Já quanto ao personagem Tiziu, a história dele é uma tragédia, pois abordo a grande questão do acidente de trabalho, muito comum no chamado “milagre brasileiro”, durante o Regime Militar (1964-1985). Como todos sabem, tiziu é um pássaro que se urbanizou, vive de restos de comida nas grandes cidades. O título, na verdade, é simbólico. É a história de Agostinho, que depois de 25 anos em São Paulo volta à sua terra de origem. É a saga de um homem que vive a dura e descarnada história vivida por milhões de brasileiros, aqueles que nascem e vivem bem longe até mesmo dos mínimos direitos de um cidadão, lutando duramente pela sobrevivência e sonhando sonhos que, embora pequenos, não têm qualquer chance de realização. O enredo, no entanto, é a volta. A volta para encontrar a si mesmo em um lugar que não é mais o mesmo. Veja o que acontece quando Édipo volta a Tebas, quando Orestes volta a Argos. Nos gregos, em toda literatura de ficção, o ser humano não quer voltar, mas volta. É empurrado para trás, para buscar a si mesmo, e o que encontra? O nada. “Tiziu” é, sem dúvida, o meu texto mais elaborado. Trabalhei quase oito anos para terminar 134 páginas de uma novela densa, mas agradável de ler. Nas três histórias de Paragens, que inclui as três novelas “Tiziu”, “Pássaro selvagem” e “Paragens e está no catálogo da Editora Boitempo, mostro personagens que estão preocupados, num mundo difícil de viver e conviver, em realizar-se plenamente como seres humanos, em assumir sua própria humanidade.
 
Liliana Peixinho -- De onde vem a forte carga social presente em sua literatura?

Roniwalter Jatobá -- Foi na escola de jornalismo, em meados da década de 1970, já em São Paulo, que comecei a escrever os primeiros trabalhos. Eram contos e, em todos eles, o cenário era a periferia paulistana e os dramas dos migrantes em São Paulo, certamente inspirado na minha vivência.
 
Liliana Peixinho -- Como jornalista, escritor e de memórias afetivas catingueiras, como você observa questões sociais sérias como a exploração do trabalhador rural no mega potente mercado do agronegócio/commodities agrícolas?

Roniwalter Jatobá -- É triste ver ainda, em pleno século 21, situações de trabalho em regime de escravidão. Para falar sobre isso já dei duas palestras sobre o tema “Literatura e Trabalho” para formandos da Escola de Juízes do Trabalho, no Rio de Janeiro. A exploração vem de longe, mas se tivermos rigorosas apurações nos ambientes de trabalho, inclusive com pesadas multas, tudo poderá melhorar. E, para os escritores, contar isso usando a memória. Veja: durante os anos de 1940 e 1950, chegavam a São Paulo cerca de 500 mil brasileiros vindos do Nordeste em busca de melhores condições de vida. São milhares de sagas, milhares de histórias de vidas humanas. Por isso, em toda a minha obra esses migrantes marcam presença e, por meio das suas trajetórias, nos ensinam que pode haver poesia num mundo de arestas e asperezas.
 
Liliana Peixinho -- Nesse cenário  cinematográfico, pinçado de informações do blog "Salve César" : "A pobreza, a exploração, o trabalho sem direito a domingo e feriado, os baixos salários, a constante ameaça de demissão, a família crescendo, os filhos nascendo e precisando das coisas, tudo isso dá no trabalhador uma tristeza de chorar, como na música Gente humilde, de Garoto, Vinícius de Moraes e Chico Buarque, a mesma gente humilde que também na  ficção de Roniwalter Jatobá mora nos subúrbios (Domingo tem cinema): […] “a gente perde o gosto pelas coisas, vai definhando, se acomoda num canto, só não chora porque é feio. Mas que dá vontade, isso dá”. A mutilação de membros aleija e inutiliza os trabalhadores mais distraídos (A mão esquerda): “E foi passando na cabeça o meu choro, o sangue melando a máquina, o azul dela, fui sentindo vergonha, não me veio um tico de nada de ódio da prensa, da prensa que me deixou com tocos nos dedos, um homem aleijado, inutilizado como dizem por aí, não, não senti raiva cega da máquina, só da minha fraqueza, do meu medo, do meu descuido, do choro, essa mão, agora, pois vê, pesada e quieta como se não parecesse minha”. Também na grande cidade e no pátio da fábrica, todos são joões, joões ninguém (Trabalhadores): “Éramos três joões que se perderam por aí, nesse São Paulo sem datas, os dias parecidos, todos iguais, cada um de nós carregando sua sina traçada desde o nascimento ou muito antes, nos rostos suas esperanças estampadas e trazendo de outras erras seus sonhos, cada um indo e vindo na marcação de seu destino”. Porém, apesar de toda a vida de sacrifícios, de todo cansaço e de todo sofrimento, a esperança resiste, como um pássaro que pousa sobre uma prensa desativada, ou o homem do conto O trem, a estação… todos os dias, do livro Crônicas da vida operária, que observa a cidade e os companheiros taciturnos dentro do trem lotado que traz os operários de volta para casa, após a jornada de trabalho exaustiva: […] “aí não dá pra perder a fé e não me vejo mais só no mundo".

Como você observa a declaração do crítico literário Fábio Lucas- autor de O caráter social da ficção no Brasil- ao dizer que alguns contos de Roniwalter Jatobá “se apresentam como uma crônica da vida infeliz”?

Roniwalter Jatobá --Sou um seguidor da literatura social que tanto mostrou a verdadeira face do Brasil e contou com nomes como Graciliano Ramos. Tento sempre me aprofundar na temática e elaborar cada vez mais a linguagem, fugindo, claro, do ranço naturalista. Num país que, nos últimos anos, tem produzido muita “literatura” de alienação (magia, autoajuda, trapaçarias psicoterapêuticas etc.), busco uma literatura que olhe a vida de frente. De certa forma, busco devolver ao leitor aquele Brasil que já esteve presente em nossa literatura de ficção, sobretudo a partir dos anos 30, que tanto ajudou na formação de uma consciência nacional. Talvez por isso seja muito próximo à literatura do Velho Graça, que profeticamente relatou em Vidas secas, lançado em 1938: “Que iriam fazer? Retardaram-se temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes e brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos.” Enfim, esses homens fortes e brutos que vieram para a cidade grande são meus personagens.
 
 
Liliana Peixinho -- O jornalista Elieser Cesar escreveu sobre seu trabalho: "O escritor mineiro empunha sua pena para tomar o partido dos pequenos, dos mais fracos, dos explorados e o faz com ardor militante, sem, contudo, cair na armadilha sectária e maniqueísta do chamado ‘realismo socialista’”. Pergunto: O "valor documental" de seu trabalho desperta interesse cinematográfico?

Roniwalter Jatobá – Até agora não. Também não sei o porquê. Cinema exige muito dinheiro, talvez seja isso. Meu grande amigo Valdomiro Santana, colega dos bancos ginasiais do hoje Colégio Augusto Galvão em Campo Formoso, e recentemente falecido, escreveu o roteiro do conto Sabor de química, mas não saiu do papel. No começo dos anos 80, uma companhia teatral encenou um espetáculo baseado no meu livro Filhos do medo.
 
Liliana Peixinho -- Publicar livros ainda é burocrático e caro, principalmente no Nordeste. Como observa o comportamento/mercado editorial nessa região?

Roniwalter Jatobá -- Publicar por grandes editoras é sempre difícil e, por sinal, ficam todas no eixo Rio-São Paulo. Acho que dei muita sorte, talvez estivesse no lugar e na hora certa. Além disso, na época, existiam revistas literárias, como Escrita, em São Paulo, e Ficção, no Rio, que abriam suas páginas para os novatos. Jornais publicavam prosa e poesia em seus cadernos culturais. Mas, com a possibilidade hoje de fazer pequenas tiragens, felizmente tem surgido pequenas editoras em várias capitais do Nordeste, fazendo o mesmo caminho da Patuá, em São Paulo, ou Mondrongo, de Itabuna.
 
Liliana Peixinho -- Que caminhos você indica para quem escreve, por exemplo, sobre a caatinga e desafios cotidianos em ambientes de vida no descaso?

Roniwalter Jatobá – Gosto de comentar sobre dois fatores importantes que me fizeram arriscar na literatura: muita leitura e vivência. Falaria ainda da minha trajetória pessoal, desde o nascimento até a vinda para São Paulo e o trabalho em fábricas. Diria ainda sobre a volta para a terra de origem de meus pais na Bahia, aos 11 anos, já que foi importante para mim. Vivendo na casa de um tio, entrei no então Ginásio Augusto Galvão e, aí, a descoberta da literatura. Em Campo Formoso, por sinal, havia um oásis cultural. Nunca me esqueço: os jovens, na grande maioria, brigavam para ver quem ia ler primeiro as novidades literárias que chegavam de Salvador. Havia ali um advogado e professor de geografia, Domingo Dantas, que colecionava livros autografados de autores brasileiros. Tinha todo mundo. Ele mandava buscar no Rio de Janeiro. Naquela época, e durante quatro anos, nos esbaldamos de ler Graciliano Ramos, José Lins do Rego e muita prosa americana. Enfim, ler.
 
Liliana Peixinho -- Você também fez suas incursões na literatura infanto-juvenil. Fale um pouco sobre esta experiência

Roniwalter Jatobá -- Há escassez de bons textos para o público jovem. Num limbo entre o leitor adulto e o infantil, os jovens sentem falta de uma literatura que aponte rumos num momento de formação da sua personalidade. Por isso, aproveitando a minha experiência em duas publicações muito especiais que abordaram a história brasileira e nas quais trabalhei (Nosso Século, da Abril Cultural, e Retrato do Brasil, das editoras Três e Política), editei para o público jovem A crise do regime militar e Juazeiro: guerra no sertão, sobre o padre Cícero, ambos pela Editora Ática. Depois, comecei a escrever para a coleção “Jovens sem fronteiras”, da Editora Nova Alexandria, onde publiquei O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005) e O jovem Fidel Castro (2008), O jovem Monteiro Lobato (2012). E O jovem Luiz Gonzaga, que conta a trajetória do “rei do baião”, desde o seu nascimento em Exu, Pernambuco, em 13 de dezembro de 1912, até a sua morte em 2 de agosto de 1989, em Recife. Uma curiosidade: aqui eu começo o livro narrando um dia de junho de 1988, quando já doente, chega a Senhor do Bonfim para um show nas festas juninas. Ao subir no palco, sem forças, foi amparado pelo jovem fotógrafo bonfinense Mauro Coelho. Já pelas editoras Positivo/Maralto, de Curitiba, publiquei três livros dirigidos ao público infantojuvenil: Viagem ao outro lado do mundo (2009), Alguém para amar a vida inteira (2012) e Sina (2014)
 
Liliana Peixinho -- Pretende escrever algo sobre essa sua viagem imersiva em territórios afetivos da Bahia?

Roniwalter Jatobá – Há anos viajo para a região para rever parentes e amigos. Também há anos pesquiso, nessas viagens, algum fato que me ajude a produzir um romance cuja história se passa em 1926, na Chapada Diamantina, durante a grande epopeia da Coluna Prestes na região e da formação de Ponte Nova em centro médico e educacional ligado aos presbiterianos. Uma hora mergulho nessa fascinante aventura.

* Liliana Peixinho- jornalista, ativista humanitária, Especialização em Jornalismo Científico, prioriza pautas ODS em campo Imersivo comunitário.
Apaixonada por jornalismo literário.
 

O escritor Roniwalter Jatobá está em roteiro de viagens imersivas, entre São Paulo e Bahia, na trilha de vidas nordestinas.