Walmir Rosário
14/06/2020 às 10:27
Amanheci o dia pensando no futuro e me dei conta que é incerto e não sabido – o que nunca foi novidade –, embora a gente sempre acredite que temos o poder sobre o nosso destino. É muito bom pensar assim, fazer planos, mesmo do alto dos 70 anos, pois faz muito bem para a cabeça e espairecer as ideias. Até mesmo cantar ajuda, desde que se cante bem ou restrinja esse ato à hora do banho, longe de ouvidos alheios.
Enquanto vou voando nos meus planos abro as redes sociais para ver o que vai além do meu redor e me deparo com coisas – digamos – nem sempre alvissareiras, daquelas que sentimos o prazer de começar o dia. Numa entrevista um cientista dava a entender que ao falecido não é dado ao direito de fazer valer sua causa mortis e de que nada adianta morrer de cirrose, após anos e anos regando o fígado nos bares da vida.
Lembro-me bem que nos anos 70 o poeta Vinícius de Moraes – que não morreu de cirrose e sim de edema pulmonar – abriu um bar em Ipanema com um sócio argentino, batizado com o pomposo nome de “Cirrose, a apoteose do fígado”, dada a importância da conhecida doença. Doença para alguns, pois para outros era apenas uma ação paulatina de abreviar a vida, porém em longas e intermináveis prestações.
Ah! Nem esse direito de escolha é dado ao consciente cidadão, mesmo que tenha feito e lavrado um testamento em perfeito gozo de suas faculdades mentais e frente a frente do competente tabelião. Morto, sem mais nem menos lhe é imputada outra causa mortis bem diversa daquela que lutou com galhardia o tempo todo, para que fosse reconhecido como um bom vivant, um boêmio, frequentador dos mais refinados bares e boates da cidade.
De cara, assim que lhe atestam que “fechou o paletó”, recebe um carimbo de todo o tamanho na sua folha de atestado de óbito com a nefasta doença “Covid-19”, sem ao menos ter flertado com essa chinesa. E já que partiu desta para outra não lhe será permitido o último jus sperniandi, quiçá da família em exigir um velório digno, com todas honras e brindes de eternas saideiras ao som do dedilhar de um violão, banjo e pandeiro.
Nada desses desejos, considerados devaneios pelas autoridades serão possíveis nem por força de um mandado de segurança, pois dirão que o de cujus não ostenta mais o poder – capacidade processual – de ingressar em juízo. Sem choro nem vela é sepultado quase sem testemunhas, longe daquela cerimônia que passara anos e anos planejando como a última farra a participar com os amigos.
Pois é, eu conheço algumas pessoas – festeiros por natureza – que já encomendaram o “paletó de madeira”, enquanto outros já lavraram a termo todo o ritual fúnebre, sem desprezar uma boa farra, tal e qual participa enquanto vive nesta terra que lhe há de comer. Acredito até que seja um treinamento semanal. Já outro meu chegado prefere ser cremado com todos os requintes e não dispensa a madeira de sândalo, como os hindus.
Cada um com sua mania – ou seria jeito de viver – e acredito piamente que tenha o direito de ser atendido, já que seu último desejo não se pode negar, como dizia na música o saudoso Noel Rosa. E não é pra menos, o distinto passa sua vida trabalhando e nem sempre consegue realizar os sonhos em vida, deveria, ao menos ter satisfeito seus desejos quando passar desta vida para outra, se é que existe.
Eu mesmo não tenho opinião formada sobre se existe vida depois da morte, mas não terei como duvidar de tese alheia, até por uma questão de respeito ao tempo dedicado aos estudos necrológicos e post mortem. Conheço casos em que pessoas chegadas compravam as urnas funerárias, mais conhecidas como caixões, e trocavam frequentemente assim que lançado novo modelo, e somente fechavam negócio após provar e aprovar o conforto interno conforme prometia o vendedor.
Um outro amigo de noitadas não abriu mão sequer de deixar pronto o epitáfio, pensado e confeccionado em fonte gótica germânica medieval Sketch Gothic School, tamanho grande. E a peça em aço escovado está exposta na sala de visitas de sua casa e ostenta os seguintes dizeres: A contragosto, permaneço em repouso absoluto enquanto aguardo os amigos verdadeiros para brindar o definitivo encontro. Tim-tim.
Diante de argumentos tão brilhantes e robustos, tomo a liberdade para solicitar os obséquios de algum político com força suficiente no congresso nacional para apresentar e fazer aprovar projeto de lei garantindo a última vontade – quando ainda expressa em vida – do de cujus. Somente assim teremos os direitos garantidos, evitando, portanto, que o cidadão brasileiro se reduza a um simples número ou percentual nas estatísticas de mortandade.