MINHA MÃE, Adriana Ferreira Costa, não sabia ler nem escrever. Abandonou muito jovem a roça na zona rural de Irará, terra do tropicalista Tom Zé, e veio a Salvador ser empregada doméstica.
Meu pai, José Inácio, pedreiro e mestre de obras, morreu repentinamente cedo, deixando-a viúva antes de essa completar os 30. Com três meninas e quatro meninos, num total de sete filhos.
Afora uma mais velha, de um relacionamento anterior dele, já mandada para uma sua irmã que fora tentar a sorte na Guanabara, então capital da República.
Dos matos da então chamada Lapa, hoje município Amélia Rodrigues, ele também foi migrante. Rompido com a família, em Salvador rebatizou-se com o sobrenome Conceição, talvez por devoto de Nossa Senhora.
De São Lázaro, ou melhor, de Omolú, com certeza era, pois distribuía pipocas todas as segundas-feiras, tradição que a viúva continuou. Foi um dos pioneiros na ocupação do que depois se tornaria a favela do Calabar, em zona nobre da cidade.
Tinha dois anos de idade quando meu pai morreu, portanto não o conheci. Como não havia talco, parece que mamãe passou açúcar em mim, a crer no cantor Wilson Simonal…
A filha mais nova era um bebê de dois meses. A mais velha não completara ainda dez anos. Era uma escadinha de pimpolhos a atazanar a paciência de qualquer um.
Minha mãe, para ser dona de casa, esposa e mãe de seus filhos, foi retirada por ele da “casa dos brancos” – como se dizia do trabalho doméstico na Bahia descrita por Thales de Azevedo em As Elites de Cor. Viu-se, com a morte, tendo de administrar o espólio deixado pelo marido em comércio e alugueis de outras casas.
Era uma vida dura para uma jovem mulher sem orientação sobre os negócios. E sem parentes, além de tudo tabaréus do interior mais analfabetos que ela. Em pouco tempo, fomos literalmente à ruína.
Inclusive a casa onde morávamos. Foi destruída não apenas pelas frequentes enchentes. Uma enorme árvore (Pé de Louco) numa madrugada de tempestade desabou por sobre nós, pondo abaixo as frágeis paredes.
Apenas a mãe se feriu, com um feio corte na cabeça. Na favela não havia luz, água canalizada, esgoto: apenas miséria e labutas. Apiedadas daquela viúva, suas comadres menos na pinguela se solidarizaram na guarda das crianças.
Assim fomos distribuídos para ser criados aqui e ali por outrem, ao menos por alguns poucos anos.
Uma das representações possíveis de Omolú, orixá do panteão gege-nagô que no sincretismo brasileiro da igreja católica remete a São Lázaro.
Uma das representações possíveis de Omolú, orixá do panteão gêge-nagô que no sincretismo brasileiro da igreja católica remete a São Lázaro
Enquanto minha mãe voltava para o batente na “casa dos brancos” de segunda a sábado, reunindo as crias aos domingos. Essas horas usava para ao mesmo tempo lavar e passar roupas, cozinhar, dar-nos o calor materno que podia dar, estafada. Na adolescência dediquei-lhe um poema.**
Ela tinha de ser sábia e se obrigou a isto. Com o tempo, depois de a comunidade do Calabar levantar-se contra as ameaças de expulsão do capital imobiliário macomunado com os governantes, tornou-se voz ativa nas reuniões e assembleias de lutas.
SURPREENDENTE foi o ocorrido no salão nobre da Reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBA) quando o diretor de Redação do jornal A Tarde, Jorge Calmon, no momento das congratulações finais, aproximando-se dela, a chamou pelo nome.
Jorge Calmon foi o paraninfo da turma de formandos em Jornalismo daquele ano, 1986. Além de discursar levaria os formandos para um brinde fechado com sua família na mansão em que residia no Corredor da Vitória, bairro tradicionalmente nobre da capital. Ofereceu ainda a festa de formatura para os convidados no então elitizado clube Bahiano de Thênis, sobre o qual Gilberto Gil diz na letra de “Tradição” [clique aqui para ouvir] que “preto não entrava nem pela porta da cozinha“.
Sim, Jorge Calmon reconheceu Adriana. Apertou sua mão e lhe deu um abraço no salão nobre da Reitoria da UFBA. Onde agora um dos seus filhos era diplomado jornalista. Com direito a foto na prestigiosa coluna social da “July” na edição do jornal do dia seguinte, em que apareço ao lado da colega formanda Suely Temporal. O feito não mais se repetiu.
O aristocrático diretor de A Tarde, em verdade criador do curso de Jornalismo nessa universidade, virou-se para mim e disse que conhecia minha mãe de longas datas, no tempo ainda em que era estudante e morava com os pais na Rua Flórida, bairro da Graça.
Minha mãe tinha sido empregada doméstica da família Calmon, uma daquelas oriundas da colônia portuguesa nos trópicos. Está em Eul-soo Pang (Coronelismo e Oligarquias).
Por volta da meia-noite em junho de 2009 o avião, vindo de Madrid, pousa no aeroporto de Dakar. No mesmo instante minha mãe morria num leito de um hospital em Salvador.
Horas antes uma prezada amiga, ex-aluna minha na Faculdade de Comunicação (Facom) mas antes disso graduada em Enfermagem, enviou-me uma mensagem por e-mail. Como plantonista-chefe da enfermaria, assegurava que dona Dudú (como os conhecidos a chamavam) estava tendo todos os cuidados para morrer tranquila, sem mais dores.
Era minha primeira viagem ao continente africano, em atividade de pesquisa. Na altura o filho de Adriana Ferreira Costa residia por um ano na capital da Alemanha, bolsista da Capes de pós-doutorado na Freie Universität Berlin.
Nada de queixas. É seguir adiante na batalha, sem perder o tino, como ensinava dona Dudú. 2016 foi um ano bom em vários aspectos. Para o país. E para este escrevinhador.
Ao contrário do Cândido, de Voltaire, não é o melhor dos mundos possíveis mas é o que temos. 2017 nos aguarde!