Marcelino Galo
28/06/2015 às 13:17
Quando você ouvir falar de armas químicas, lembre-se de seu almoço. Rememore o seu prato. Evoque em sua memória as últimas refeições em família. Uma guerra química de raízes econômicas acontece todos os dias, silenciosamente, na mesa de todos os brasileiros. E o pior. Isso não é uma metáfora.
Dos 50 agrotóxicos mais utilizados nas lavouras de nosso país, 22 são proibidos na União Europeia. Os europeus não topam comer isso, mas aceitam nos vender. Outras dezenas destes produtos não estão proibidos ainda, embora já se tenha inúmeros estudos que associam o seu uso às doenças, malformações e mutações genéticas.
O Brasil é o campeão mundial em consumo de agrotóxicos, maior importador e contrabandeador desses produtos.
Podemos constatar historicamente que a indústria química avança em tempo de guerra. Todavia, ela precisa vender em tempos de paz as substâncias que descobriu na guerra. O DDT era usado para “proteger” os soldados contra piolhos e o tifo. Na guerra descobriram o Aldrin, Dieldrin, Heptacloro, Totaneno e outros organoclorados, como o DDT. Na paz, esses produtos iam para os pratos.
E assim, foi do matrimônio poligâmico entre a indústria química, a guerra, e a agricultura pós guerra, que os agrotóxicos se transformaram numa catástrofe sanitária brutal, sob o manto protetor do Estado brasileiro, e do mutismo da humanidade.
A junção dos interesses da grande indústria química, aliada ao agronegócio, desencadeia no atual sistema político a formação de poderosa bancada disposta a “barrar” qualquer iniciativa de regulamentar o uso dos agrotóxicos. Mais do que isso, com tantos parlamentares à sua disposição, essa dupla avança, beneficiada por sua superioridade econômica, midiática e política.
A saúde pública e o meio ambiente, entretanto, funcionam independentemente das bancadas e suas investidas.
Assim, no final caberá a você, que foi envenenado, arcar junto com o Sistema Único de Saúde, o tratamento de doenças como a infertilidade, impotência, abortos, malformações, problemas hormonais, efeitos sob o sistema imunológico, câncer e demais males associados aos agrotóxicos.
E qual o ônus que essas multinacionais vão carregar pelo custo à saúde e ao meio ambiente?
Nenhum, ao contrário, o Brasil premia os agrotóxicos com isenções fiscais e tributárias. 60% da alíquota de ICMS a todos agrotóxicos, isenção de IPI para os agrotóxicos com diversos princípios ativos, assim como o PIS/PASEB e COFINS.
Ao mesmo tempo, nos últimos 10 anos o mercado mundial de agrotóxicos cresceu 93%, enquanto o mercado brasileiro, em sua Blitzkrieg, avançou 190%.
Por força dos princípios da Precaução e Prevenção, os entes da Federação, as instituições públicas, e o Poder Legislativo precisam dar respostas a esta inversão de responsabilidades, fazendo com que o poluidor seja o pagador, como determina a lei. E assegurando a regulamentação da produção, comercialização e uso dos agrotóxicos de forma a proteger a supremacia do interesse público sobre o interesse privado. Defender a vida.
Neste cenário é que o Estado da Bahia vive uma disputa no legislativo estadual entre os que lutam para regularizar o uso e o comércio de agrotóxicos e uma bancada disposta a “barrar” a regularização.
Os números do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA/ANVISA - 2002) mostram como as baianas e os baianos estão se envenenando. 60% dos morangos analisados, 60% dos pepinos, 50% das cenouras, 60% das uvas e 40% dos abacaxis em amostras colhidas no Estado da Bahia continham níveis inaceitáveis de agrotóxicos. De 138 amostras, 30,4% continham níveis de agrotóxicos classificados como “insatisfatórios”. As demais amostras continham resíduos de agrotóxicos, mas em menor quantidade.
Entretanto, esses testes não incluem diversas substâncias como o glifosato e o paraquat. Além disso, o número de análises de alimentos feitas nas cidades baianas é irrisório, frente ao número de propriedades rurais no Estado e do volume de comércio desses produtos. Entre as substâncias encontradas nesses vegetais estão algumas particularmente perigosas e proibidas, como o Triclorfom, banido em diversos países, como a Alemanha e a Austrália, e no Brasil, com laudo técnico do IBAMA e Anvisa proibindo seu uso.
O problema é agravado com a pulverização aérea, prática que a Comunidade Europeia proibiu, abrindo exceções em casos específicos em que ela se mostre ambientalmente menos danosa e, ainda assim, sob uma série de garantias e aprovação do Estado membro. Estima-se que somente 30% dos agrotóxicos pulverizados atingem as plantas almejadas. O restante é carregado pelo vento, contaminando o ar, solo, a fauna, mananciais de água e a população rural e urbana.
TENTATIVA DE REGULAMENTAÇÃO E FORMAÇÃO DA “BANCADA DO AGROTÓXICO”
Para enfrentar a questão propus três Projetos de Lei na Assembleia Legislativa da Bahia.
O Projeto de Lei 21.317/2015 obriga a indicação expressa do uso de agrotóxicos nos produtos alimentares produzidos e comercializados no Estado da Bahia, o PL 21.314/2015 proíbe a pulverização de agrotóxico realizada por meio de aeronaves, e o PL 21.273/2015, que proíbe o uso e comercialização de agrotóxicos que contenham alguns princípios ativos, entre eles o glifosato, uma substância largamente difundida e perigosa, fonte de doenças para a população, graves danos ao meio ambiente e fortuna para a multinacional Monsanto.
Pouco tempo após a apresentação desses projetos, fui surpreendido com declarações de alguns deputados baianos, fornecidas à imprensa, de que iriam “barrar” essas iniciativas. As declarações foram dadas ao portal G1 Bahia (3/06/2015), como garantia dos deputados aos grandes produtores rurais, durante a 11ª edição da Bahia Farm Show, a maior feira de agronegócios do estado, no município de Luiz Eduardo Magalhães.
Para se ter uma ideia, somente neste evento era prevista uma movimentação de aproximadamente um bilhão de reais em negócios. Não havia melhor cenário para se criar a bancada do agrotóxico, e impedir o avanço desses projetos no parlamento baiano.
Respeito o posicionamento de todos os parlamentares, mas esta não é uma questão que se pode “barrar” sem profundos debates com a comunidade científica, com médicos, biólogos, agrônomos, pesquisadores. Esses é um debate que precisa ser colocado à luz da ciência, sob a lamparina dos laudos, e exposto e debatido com a sociedade baiana.
A Frente Parlamentar Ambientalista da Bahia, a qual eu coordeno, tem realizado inúmeras atividades em seus quatro Grupos de Trabalho (GT´s). Da mesma forma, a Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública, na qual sou presidente. Temos reunido diversas órgão públicos e instituições de Estado, juntamente com pesquisadores de todo o Brasil, entidades da sociedade civil e grupos ambientalistas para discutir o impacto dos agrotóxicos, buscando transformar as informações e sugestões colhidas em proposições legislativas e outras ações de acompanhamento e fiscalização da execução das políticas públicas do setor.
Em todas essas audiências públicas a necessidade de regulamentação restritiva dos agrotóxicos é um ponto consensual entre os participantes. Os cientistas são enfáticos. Os médicos são explícitos.
Recentemente, o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), órgão do Ministério da Saúde, ao tempo em que advertia para aos graves danos causados à saúde da população, posicionou-se nesses termos com relação ao uso de agrotóxicos:
“Considerando o atual cenário brasileiro, os estudos científicos desenvolvidos até o presente momento e os marcos políticos existentes para o enfrentamento do uso dos agrotóxicos, o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA) recomenda o uso do Princípio da Precaução e o estabelecimento de ações que visem à redução progressiva e sustentada do uso de agrotóxicos, como previsto no Programa Nacional para Redução do uso de Agrotóxicos (Pronara). Em substituição ao modelo dominante, o INCA apoia a produção de base agroecológica em acordo com a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Este modelo otimiza a integração entre capacidade produtiva, uso e conservação da biodiversidade e dos demais recursos naturais essenciais à vida. Além de ser uma alternativa para a produção de alimentos livres de agrotóxicos, tem como base o equilíbrio ecológico, a eficiência econômica e a justiça social, fortalecendo agricultores e protegendo o meio ambiente e a sociedade”
Cerca de 20% dos pesticidas fabricados no mundo são despejados em nosso país. Um bilhão de litros ao ano. Um consumo per capita de 5,2 litros de agrotóxico/ano.
O consumo abusivo de agrotóxicos representa um dos maiores desastres ambientais deste século.
O ENFRAQUECIMENTO DA ANVISA E DO IBAMA NA REGULAÇÃO DOS AGROTÓXICOS: O CASO DAS “EMERGÊNCIAS FITOSSANITÁRIAS”
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO, juntamente com a Fundação Oswaldo Cruz e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio produziram uma das mais completas e veementes publicações sobre esse tema. No livro “Dossiê ABRASCO – um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde”, a Bahia se destaca negativamente, como um exemplo de como as mudanças na legislação, patrocinada pela bancada ruralista, enfraquece o papel da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na função de regular os agrotóxicos.
Em 2013, durante a votação da Medida Provisória 619/2013, a bancada ruralista incluiu três artigos no texto (artigos 52,53 e 54), que entre outras coisas concede ao Ministério da Agricultura o poder de flexibilizar as restrições ao uso dos agrotóxicos e, em caso de declaração de “emergência fitosanitária e zoosanitária”, autorizar o uso de substâncias proibidas.
“A confirmação de se tratava de uma ação articulada entre setores do agronegócio representados por lideranças da bancada ruralista e setores do governo federal veio com a publicação da Lei 12.873, em 24 de outubro de 2013, que manteve os três artigos na íntegra (BRASIL, 2013a) e a regulamentação desses artigos através do Decreto Presidencial 8.133, de 28 de outubro de 2013 (BRASIL, 2013b). Uma semana depois, o MAPA declara a Bahia oficialmente em estado de emergência fitossanitária em relação ao inseto Helicoverpa armigera e três dias depois, em 7 de novembro, publica a Portaria 1.109 (BRASIL. MAPA, 2013c), na qual autoriza a importação da substância benzoato de emamectina, agrotóxico que não foi autorizado no Brasil devido ao seu perigo para a saúde humana.
Todo o trâmite – desde a aprovação na calada da noite na Câmara dos Deputados até apreciação e aprovação no Senado, sanção e regulamentação presidencial, declaração de situação de emergência fitossanitária em uma região do Brasil e autorização para importação de um agrotóxico até então proibido pelo MAPA – durou 43 dias”. (ABRASCO, 2013. p. 469)
O benzoato de emamectina, importando às toneladas, havia tido o seu registro indeferido pela Anvisa em 2003. A agência considerou seu uso um perigo à saúde, em especial devido à sua elevada neurotoxicidade e a suspeita de teratogênese (má-formação fetal).
O Ministério Público da Bahia entrou com uma ação para proibir o uso desse agrotóxico, mas o Tribunal de Justiça da Bahia autorizou a importação do benzoato de emamectina. Com isso, a substância foi largamente usada e há suspeita de que até estoques dela tenham sido formados.
DESASTRE ANUNCIADO DE SAÚDE PÚBLICA
Na França, uma epidemia de câncer ocorreu porque o comitê criado para estudar o problema do amianto foi dominado por lobistas do setor, que falharam em defender o interesse público, segundo conclusões de um relatório do Senado francês sobre os impactos da substância, proibida pelos franceses em 1997 e até hoje permitido no Brasil.
“Enquanto 35 mil mortes podem ser atribuídas ao amianto entre 1965 e 1995, outras 60 mil a 100 mil mortes são esperadas nos próximos 20 a 25 anos", destacou o relatório, que classifica o caso como o "pior desastre de saúde pública" da França.
Os exemplos históricos devem servir-nos de alerta. O que estamos assistindo na Bahia, com o uso abusivo de agrotóxicos é, assim como ocorreu na França no caso do amianto, é a supremacia do interesse privado sobre o interesse público. E esta omissão já traz danos à saúde da população, e ameaça a saúde das futuras gerações.
Esta é uma guerra diária, da qual ou você faz atua ou é envolvido sem sequer dar-se conta de que está no meio de um conflito. Para vê-lo, não é preciso olhar as manchetes dos jornais sobre o Iraque, Síria ou o Afeganistão. Basta observar o seu prato.
*** Por Marcelino Galo. Engenheiro agrônomo, deputado estadual (PT/BA), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista da Bahia, vice-presidente da Comissão de Meio Ambiente e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública da Assembleia Legislativa da Bahia.