Fernando Conceição
30/05/2015 às 09:45
SE HÁ UMA figura em Salvador que gosto assim de graça é Dimitri Ganzelevitch, marchand e viajante desse mundo de meu deus. Mas não o convide para a mesma mesa, digamos, da escritora Aninha Franco – outra das donas do meu coração.
Africano do Marrocos, ex-possessão francesa, de família judia de ancestrais eslavos (Dimitri é nome comum na Rússia), fez-se e faz-se respeitado no ambiente cultural com suas exigências e idiossincrasias. Essas, menores que as suas inquietações e criatividade.
É dele a criação, produção e financiamento do concurso anual que premia, na Praça Cayru defronte ao Mercado Modelo, o mais criativo carrinho de vendedores ambulantes de cafezinho das ruas de Salvador.
É um estimulador e colecionador de objetos da cultura popular, tendo se iniciado no comércio baiano com um box nesse mesmo Mercado Modelo na década de 70.
Quem me conhece de perto sabe que para eu gostar de graça e declarar isso é um elogio. Que faço publicamente a Dimitri, nesta semana em que amigos se reuniram em torno dele para comemorar os seus 40 anos de Bahia.
Eu o conheci muito antes dele a mim. Sempre fui, desde tenra idade, leitor assíduo e assinante da Gazeta Mercantil. Sediado em São Paulo desde 1920, um dos melhores jornais de economia já existentes no Brasil, até sua falência em 2009.
Dimitri já era um zelador de arte, um connoisseur, um décorateur e um gourmet famoso no começo dos anos 2000. Foi quando a talentosa jornalista Maria José Quadros, editora-chefe da edição baiana da Gazeta, deu a ele uma coluna semanal de crítica gastronômica. Crítica cultural, na acepção plena do termo, feita com autonomia.
Ele ia ao restaurante escolhido sem se identificar, pagava do próprio bolso a conta e depois escrevia sobre o repasto e o ambiente, se gostou ou não.
Sempre com critério, demonstrando saber do traçado. Apreciador da boa mesa, deliciava-me ao ler suas descrições ou suas puxadas de orelhas aos restaurantes – muitos, estrelados por guias gastronômicos – por ele visitados.
No processo de extinção da Gazeta Mercantil da Bahia, já com o jornalista Paulo Leandro no comando, ofereci a Dimitri um espaço permanente no alternativo jornal Província da Bahia, que editei, com intervalos, de 1998 a 2005.
Para escrever o que quisesse. Coisa que o fez, sempre com inteligência e polêmica. Virou, inclusive, uma espécie de conselheiro editorial, assistente de reportagem – acompanhando-nos em entrevistas de campo por aí – e coletor de caraminguás para bancar a publicação.
Dimitri tinha sido publicado bastante em importantes revistas especializadas em decoração, mobiliário e arte antiquárias, nacionais e estrangeiras. Virou personagem de colunistas sociais e de Veja ao ter uma ideia exclusiva à época.
Abriu sua residência, um sobrado de dois pavimentos com anfiteatro no Boqueirão, voltado para o porto de Salvador, a jantares de grupos restritos, uma ou duas vezes por mês, apenas. Havia filas de espera de gente “interessante” e boa de bolso, a exemplo de Caetano Veloso.
O que ia à mesa, incluindo o vinho, era de escolha privativa dele, Dimitri, o anfitrião exigente. Seu sobrado em si já é um patrimônio artístico. O interior, decorado com mil afrescos e peças de arte que recolhe em suas viagens pelo mundo.
Foi com o concurso de Dimitri que os ambulantes de cafezinho sentem-se estimulados a inovar em seus carrinhos
Hoje é uma casa-museu, possível visitação. Ele organiza saraus para convidados exclusivos, para audição de mini-concertos, dados mesmo por estrangeiros aos quais hospeda em sua hospedaria. O papo, a música e a interação são sempre ótimos.
A crítica que faço a esses saraus – seguindo a escola dimitriana – é quanto à exiguidade ou escassez dos acepipes servidos à mesa.
Num Réveillon, acompanhado por uma amiga alemã que me visitava pela primeira vez, ela pouco entendeu da ranzincisse da comida.
Chegamos com boas expectativas, mas saímos de lá mortos de fome, em busca de um restaurante qualquer na madrugada de um 1º de janeiro. Por pouco a nossa relação não foi pro beleléu, ali mesmo, por conta disso. Um estômago roncando faz misérias.
Auxiliava-o sempre duas pessoas marcantes, empregados fixos: uma bela mulher negra de sorriso amplo, acolhedor. E um mordomo sisudo, de poucas palavras, de olhar indiferente aos convidados, que transitava no espaço como se invisível.
Com o tempo adquiri o calor de ambos. Que, pelo que sei, se aposentaram. O mordomo regressou ao seu sertão do Cariri ou de Pernambuco.
Dimitri Ganzelevicht foi quem, ao saber da viagem que faria a Cusco (numa dessas minhas frequentes crises existenciais, na qual fui conferir o que é que Machu Picchu tinha), deu-me dicas de hospedagem e de comportamento no lugar. Bilu tetéia!
Semanas atrás mandou-me um convite para comparecer à homenagem que a ele prestaram no bar/restaurante A Boca.
Desculpou-me quando informado que ainda me encontro em Portugal, uma das suas terras preferidas, na qual viveu por anos. Ser desculpado por Dimitri em si é já um prêmio."