Nara Franco
23/05/2013 às 20:02
Houve um tempo em que as bancas do Rio de Janeiro exibiam com mórbido orgulho as manchetes sangrentas dos jornais O Povo e O Dia. No dito popular, "espremia e saía sangue" das páginas destes periódicos. Ninguém lia, mas todos sabiam qual era a foto escabrosa do dia. Era um festival de corpos baleados, sem cabeça e destroçados. No fundo, no fundo..sempre tinha alguém para dar aquela olhadinha.
Os tempos mudaram. Ainda vivo em uma cidade violenta. Na Zona Sul, tiroteios e cenas explícitas de domínio do tráfico já não são mais tão corriqueiras. Na Zona Norte também, ainda que os bondes dos criminosos dominem algumas áreas. A violência saiu de moda. Pelo menos na páginas dos jornais. Mas, ainda que as manchentes sangrentas tenham saído das bancaS, ler jornal nunca foi tão difícil. Mesmo que o sangue não escorra, a foto de um homem agredido na Lapa por estar bebendo um chope com seus amigos homossexuais vem logo abaixo de um dado alarmante: centros de religião africana, em sua maior parte, já foram alvos de agressão e/ou depredação. Ruim de ler. Na página seguinte, uma jovem é estuprada no campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro por ter dado um beijo em uma menina. O estuprador é também aluno da instituição. No pé da página, uma jovem relata que sofreu abusos sexuais de 10, eu disse 10 homens de torcidas organizadas após um churrasco.
Semana retrasada foi um estupro no banheiro da Central do Brasil. Na outra, um estupro no Jardim de Alah. Na outra, um estupro dentro de um ônibus. Há alguns meses, um estupro numa van. Haja sangue para pouca página.
Crimes de ódio, crimes sexuais, crimes de qualquer categoria, não importa, não podem morrer nas páginas do jornal que amanhã embrulhará o peixe na feira. Somos a sexta economia do mundo, seremos sede dos dois maiores eventos esportivos do planeta, nossos mandatários enchem a boca para dizer o quanto nossa classe C, D e E podem se refastelar nos crediários da vida, mas só aqui no Rio de Janeiro temos 14 estupros por dia. Por d-i-a. Não somos capazes de andar na rua sem olhar para trás. Não somos capazes de tratar como criminosos quem mata.
Para quem conhece a série Game of Thrones, passada na imaginária Westeros, onde tudo se resolve na ponta da faca, há de imaginar o quão violento era o mundo na época em que cristão eram jogados aos leões ou nas cabeças fantásticas de grandes autores. Em Westeros, traidores têm suas cabeças penduradas em praças públicas e na hora da fome, quem tem perna e disposição não vai para a panela. Pois bem .. qual a diferença do mundo fantasioso para o mundo real? Qual a diferença entre arremessar cristãos aos leões e passar seis horas, eu disse seis horas estuprando uma mulher dentro de um veículo?
Para mim, nenhuma. Mais chocante é ver a passividade da Justiça, do Congresso, de legisladores, de toda uma sociedade que assiste de forma passiva a esses crimes. Matar gays não é crime. Arremessar cachorros pela janela, como fez hoje um médico no Rio, também não. Xingar e desrespeitar a religão dos outros, muito menos. Abusar sexualmente de mulheres .. o que seria? E se você tiver menos de 18 anos, você ainda pode fazer tudo isso, ao mesmo tempo, sem nenhum tipo de punição. Zero. Nada. Niente.
Até quando seremos o país onde de fato o crime compensa? Onde uma mulher vai a uma delegacia dizer que foi estuprada e o jornal publica: "afirma que pode ter sido vítima de violência". Até quando criminosos de 15, 16, 17 anos, que tacam fogo em uma dentista, serão tratados como vítimas de alguma coisa que sei lá eu pode explicar um ato desses.
Pois bem. Fica a dica: a vítima aqui somos nós, cidadãos de bem. Há de se saber viver em um mundo onde mesmo com amor e afeto as pessoas optam por serem ruins. Optam. Pois nem todo menor que comete crime é um pobre coitado e nem todo estuprador é doente. Pior que todos eles é a impunidade que nos assombra.