Jolivaldo Freitas
09/05/2012 às 09:01
Foto: DIV |
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Jolivaldo Freitas é jornalista e cronistas das peripécias baianas |
Foi mal quando no programa da Xuxa o cinegrafista deu um big close no rosto de Gil. As narinas abertas em foco mostraram pelos emaranhados, como se fossem novelos de lã. Será que não estão cuidando direito do pobre homem? Preocupa quando os senhores setentões aparecem com pelos nas orelhas, sobrancelhas imensas, camisa faltando botão, colarinho puído, unhas grandes e sujas e o pior: bainha de calça costurada com pontos estilo "Dente-de- cão". Aqueles que ficam aparecendo na roupa escura, fios claros, diferindo do tom. Parecendo os pontilhados de meio de pista, dividindo o asfalto em mão e contramão.
Não é possível que Gil esteja economizando na ida ao salão de beleza ou em uma profissional que vá pelo menos uma vez por semana em sua casa. Será que não estão ligando mais para ele? Brigou com a mulher? Ela viaja muito? Não para em casa? E as filhas? Todo mundo sabe que quando o cara vai ficando velho os parentes passam batido. Ele fica transparente.
Gil sempre foi um cara bonitão. Quem vê a capa do LP Tropicália tem os olhos voltados para suas belas sobrancelhas. Seu riso era famoso e com ele ganhou umas gatas de dar inveja. Gil ficou um pouquinho feio depois que emagreceu demais com a macrobiótica e a "cama de tatami". Mas continua um coroa charmoso e é o que vale. Sem falar que dos tropicalistas é o mais inteligente - que me perdoe Caetano Veloso, este mais esperto e perspicaz. Mas mesmo assim, será que não sabe aparar uns pelos nojentos, teia de meleca?
Foi assim com seu Marcelino, lá no triângulo formado pela Boa Viagem, Mont Serrat e Barreiro, na Cidade Baixa. Vaidoso, só andava trajando linho ou gabardine. Sapato bicolor. Chapéu da loja O Adamastor da Rua Chile. Perfume Lancaster, gravata de seda, alfinete com pérola na gravata e carteira de couro de jacaré. Merecia andar bonito pela labuta e perigo que era trabalhar no poço de Araçás, extraindo petróleo. Capataz da Petrobras que o era.
Quando a modernidade trouxe as basqueteiras, comprou um par. Vieram os sapatos Vulcabrás e se modernizou. Em casa havia trocado o tamanco ou a sandália de couro cru (que fedia a estrume) comprada na Feira de Água de Meninos, por uma Havaiana legítima. O linho foi substituído por uma calça de material sintético, da Pervinc 70, e a camisa engomada deu lugar às sintéticas Volta ao Mundo: uma azul clarinha. Outra amarelinha e uma branca - pois eram as únicas cores oferecidas e homem não ousava usar roupas com cores fortes. Vermelho nem pensar. Coisa de maluco ou de viado.
A mulher nos trinques, elegante, esbanjando o dinheiro do petroleiro, não saia de perto. Inveja dos maridos quando ela espanava um cutão de algodão que caísse no paletó escuro. Ajeitava o seu cabelo quando o Gumex (Duralex, sedelex, no cabelo só Gumex, era o slogan do produto) já não segurava o pimpão no alto da testa. Fazia questão de cortar as unhas das mãos e dos pés dele, sentada em plena porta, enquanto tomavam uma fresca, sentados em almofadas na porta de casa. Aparava o bigode. Cortava os pelos do nariz e das orelhas. Pregava botão. Ele todo prosa. E ai dos meninos que fizessem algum barulho durante a sesta de Marcelino.
Juntou dinheiro, melhorou ainda mais de vida e mudaram do bairro. Foram morar num sobrado no Campo da Pólvora e ninguém nunca mais o viu. Até o dia em que bateu saudade, já não mais na Petrobras, mas tocando um escritório de contabilidade com o filho. Apareceu no Mont Serrat numa tarde chuvosa de sábado. Visitou os velhos vizinhos e foi embora na Parati branca novinha.
Os vizinhos notaram. Estava com a roupa puída, camisa faltando botão, sapato sem lustro, faltava um dente canino, os cabelos saiam aos borbotões das narinas e se espalhavam como heras de dentro dos ouvidos, as unhas encardidas. Alguém levantou a suspeita: será que a mulher abandonou? E os filhos? A mais maldosa e fofoqueira da vizinhança levantou logo suspeita: "será que está levando chifre?" - Pode ser - respondeu alguém, completando: - Mas viu o carrão novo?
Nisso, quando procuraram seu Ivan, dono da banca de revistas, notaram que ele estava saindo de fininho tentando arrancar à unha e na tora os grossos fios que saiam das fossas nasais e levantando a gola para que não vissem os cabelos das orelhas. Foi pior: a gola estava gasta, suja, puída. E horror: a calça marrom mostrava a bainha alta, pescando siri, feita num indefectível "Dente-de-cão" que só homem que não sabe costurar é capaz de fazer. Ninguém disse nada.
jolivaldo.freitas@yahoo.com.br