CRÔNICA: A BICICLETA IMAGINÁRIA DE TIO RENATINHO

Daniela Nogueira
23/11/2011 às 08:05

Foto: ILS
Os sonhos do Tio Renatinho na visão da sobrinha Daniela
   Os presentes que não chegam nunca são inesquecíveis. Sente-se na recordação alheia, com mais veemência, a vida enfeitada de minúsculas mortes, porque as coisas que não deram certo se incrustram como luzes delicadíssimas nos cantos vazios. Ficam lá, penduradas e eternas, como quadros tortos, coloridos e imensos em paredes escuras.


  Lembro, talvez por isso, com incômoda insistência, das promessas que não concretizaram os sonhos do meu tio, mas os materializaram numa zona aberta, em intangíveis evocações de alegria e crença. Afinal, a fé nasce assim.


  Todos eram pobres antigamente, menos os muito ricos, é claro. Na minha família não foi diverso. Meus avós, atípicos em muitos aspectos - ela trabalhava, ele tecia conversa -, não foram diferentes.

   Meu tio mais velho e mais alto, Tio Renatinho, acreditava na voz dos adultos e, embalado por ela, viajava nas rodas de uma bicicleta inexistente que iria chegar de navio em Salvador e de trem até Serrinha, Sertão da Bahia.

   O padrinho de Santos mandaria o sonho e a festa sobre rodas pelo mar. Ele aguardaria e aguardou, pode ser que até hoje, com paciente convicção. No calor da demora, outro tio também se predispôs a ofertar-lhe o vôo de arames torcidos e guidão azul e prateado.

   Nada poderia ser mais belo, e Tio Renatinho contou aos vizinhos, aos amigos, à futura namorada o que seria correr pela cidade com os pés amparados por círculos brilhantes.

   A demora já inquietava os expectadores, quando seus pais, Renato e Dirck, segredaram-lhe que a avó Leonor também lhe mandaria a dádiva, dessa vez vermelha.

Meu tiozinho, do alto da sua magreza extrema e 13 anos de inocência abundante e quase parva, era uma criança deleitada com a glória.

   Desceria a Rua da Estação, empoeirado nas três bicicletas, que não vieram.

   O tempo do luto foi preenchido por outros sonhos postergados num infinito de reveses da pouca fortuna e precária saúde dos meus avós.

   Mas a bicicleta, as invisíveis bicicletas, como a Graça, deixaram suas mãos marcadas de frear com muita força no final da ladeira, quando todos o aplaudiriam num canto da praça e ele, como sempre foi generoso, dividiria o pão que não tinha, dando, a quem pedisse, uma voltinha pelo jardim. 


* Daniela Amaral é escritora
 
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