O Maristas está tombado na memória das pessoas na Rural Williys de Maurício Jacobina |
Sou ex-aluno do Colégio Nª. Sª. da Vitória, comandado pela ordem religiosa dos Irmãos Maristas e sempre conhecido em Salvador como o Maristas. Lá fiz o antigo curso científico e o primeiro pré-vestibular integrado ao 3º ano implantado na Bahia. Experiência que vale dizer, foi extenuante.
Daquela época trago a lembrança de grandes mestres, como Agenor Almeida, que fazia do ensino da Língua Portuguesa um agradável bate-papo. Ou o Irmão Estanislau, que nos obrigava a fazer as provas escritas em papel quadriculado, determinando quantos quadradinhos à esquerda da margem deveriam ser deixados em branco antes de colocarmos nossos nomes e por aí afora, passando-nos de forma indireta o sentido de ordem determinante e inerente à Matemática. Além de outros inesquecíveis professores, da ordem religiosa ou não.
Trago lembranças também de colegas que se tornaram grandes nomes no cenário baiano e nacional, como os irmãos Antonio Neto, Leur e Marcos Lomanto; o empresário sergipano Francisco Franco Barreto; Carlos Eduardo Luz Pessoa de Souza, grande engenheiro e empresário; Nelson Gesteira, talentoso artista plástico; diversos arquitetos de enorme criatividade como Neylton Dórea e Antonio Caramelo; além de outros que seguiram seus rumos longe das notícias e dos quais restaram apenas as lembranças.
Lembro ainda de grandes atividades extra-curriculares, como paquerar as meninas do Colégio Panamericano, do outro lado da rua; da memorável semana de homenagem a Shakespeare, num dos seus centenários de nascimento ou morte, sei lá mais; dos espetaculares "cavalos-de-pau" De Maurício Jacobina e sua Rural Williys sobre a quadra de basquete, quando chovia; de jornais murais com edições diárias; das maravilhosas Feiras das Nações, enfim momentos marcantes, de uma forma ou de outra, na vida de quem está se preparando para a realidade do mundo, com suas armadilhas, desafios e surpresas.
Mas não consigo lembrar de nada que se refira à estrutura física do Maristas que tivesse me impressionado. Ainda hoje, quando vou lá de dois em dois anos escolher um prefeito, um governador ou outros políticos, tudo o que me encanta está apenas na memória. Muito diferente do Mosteiro de São Bento, onde fiz o curso ginasial e cuja imponência e perenidade impregnadas de história me emocionam até hoje.
Assim, não consigo entender esta polêmica em torno da venda das instalações físicas -na verdade, o terreno- do Maristas no Canela. Não há nada de concreto ali que justifique um tombamento. O que mereceu ou ainda merece ser tombado são pessoas, vivas pelo mundo ou que dele já se foram deixando marcas eternas.
A história do Maristas não está em suas paredes e escadas absolutamente comuns, mas na genialidade daqueles que lá ensinaram e de tantos que lá estudaram. Mais nada. Sua estrutura física foi alterada dezenas de vezes, ampliado pra lá, encurtado pra cá, reformado aqui, reconstruído ali. Desde a década de 60, quando lá estudei, que se construíam quadras, derrubavam muros, aumentavam salas, numa dinâmica constante destinada a acompanhar o crescimento da instituição. Tombar o que? Recordações pessoais, particulares?
Existem dezenas de outros monumentos realmente históricos espalhados pela cidade, prestes a tornarem-se escombros, sem que se cogite qualquer providência. A Casa de Pedra da Boca do Rio, aonde os primeiros escravos chegados à Bahia ficavam confinados, foi transformada em restaurante, depois em night club e por fim desapareceu completamente da paisagem sem que qualquer lamento se ouvisse. Este é apenas um exemplo.
Impedir que se construa um moderno complexo residencial, empresarial e/ou comercial na área do Maristas é não permitir a revitalização do Canela e todo o seu entorno, numa atitude deploravelmente recorrente na sociedade baiana que parece estar sempre disposta a deter o progresso sob a farsa da preservação. Vide o caso da Mansão Wildberg, que não possuía rigorosamente nada de histórico e que deveria (sabe-se lá onde vai parar esta história) dar lugar a um empreendimento que valoriza o Largo da Vitória e sua magnífica visão da Baía de Todos os Santos, uma das últimas abertas ao público. Além de evidenciar a própria igreja da Vitória, que por sua vez já passou por diversas reformas, descaracterizando a construção original e abandonando a própria autenticidade histórica, perdendo inclusive direito ao tombamento.
Preservar a história é uma coisa, impedir o progresso é outra. Cuidar dos nossos monumentos, das nossas igrejas, das nossas referências históricas é o que precisa ser feito, mas não acontece. Ordenar o crescimento da cidade também é indispensável, mas não ao preço da intolerância, da intransigência e de uma relativa ingenuidade.
O progresso é irreversível e de há muito já se instalou em Salvador, desde ou até antes, que o Iguatemi fosse inaugurado "naquele deserto perto da Rodoviária", provocando risos irônicos de todos os soteropolitanos. O Salvador Shopping ocupou uma imensa área nobre da cidade, valorizando-a incalculavelmente e contrariando grupos que achavam o local mais adequado à criação de um parque público, enquanto o Parque da Cidade, distante poucos quilômetros, continua abandonado.
Não consigo entender o sentimentalismo colonial de alguns conterrâneos, convivendo simultaneamente com o descaso absoluto pela cidade como um todo. Sou canceriano e com tal, um ferrenho preservador do passado. Mas possuo o discernimento suficiente para saber que só vale a pena guardar na caixinha de recordações o ingresso de cinema que lembra o primeiro beijo trocado na escuridão amiga. Os outros são os outros.
O Maristas está tombado na memória e nos álbuns de fotos de todos os que o construíram e mantiveram até hoje como um grande centro formador de cultura e caráter. Nunca como um monumento histórico. Afirmo isso com a clareza de e o aval de quatro anos vividos alí.
Nada mais coerente a um lugar onde se preparam pessoas para o futuro que dar lugar a ele próprio, prosseguindo com sua missão em outro espaço físico; pois este é o que menos importa em missões desta magnitude.