Quadro as meninas de Velásquez |
Eu gosto muito de crianças. Velásquez pintou várias. Umas são bonitas, aquelas que ele encontrava na rua ou nas cozinhas. Outras bem feinhas, coitadinhas, as que ele retratava oficialmente e eram princesinhas presas em vestidos/gaiolas, maquiadas como mamulengos e ares de mal dormidas. Renoir também fez um monte delas. Hoje ornamentam caixas de chocolate nos supermercados.
Gosto das criancinhas dos antigos cartões postais como aquelas que têm uma legenda dizendo "A menina tem que sentar no penico" e a tal menina tem um enorme laço no cabelo parecendo o Mickey.
Gosto de crianças rindo no circo, ou dançando atrás de Zé Carioca, Branca de Neve ou Pinóquio nos filmes de Disney. Gosto de criancinhas boazinhas e bonitinhas. De longe. Ou em romance de Dickens, quando são tristes vítimas de velhos-maldosos-safados-desalmados e fogem, esfomeadas, pelas ruas imundas do Londres do século XIX perseguidas até por policiais barrigudos e cães raivosos.
Fora isso, nem pensar. E veja o que, justamente, me acontece quando pego qualquer avião intercontinental. Não é um, ao colo da mãe, bem afastado de meu cantinho, não. São dois ou três, bem nas minhas costas, que passarão a noite aos gritos ou dando pontas-pé na minha cadeira, re-pe-ti-da-men-tê.
Aconteceu até na volta de Gibraltar. Pai e garoto de uns cinco aninhos sentaram bem atrás da gente. Desde o principio, o pai não fala com o filho. Berra. "Olha o barquinho tão pequeno!!!" O garoto olha. "Já viu? E as nuvens!!! Olha as nuvens!! Que bonitinhas!!!" Será que a criança é surda? Tudo isso em vernacular, evidente, já que ambos são ilhéus.
Claro que o rebento acaba cansando de tanto olhar pela janela. Quero um sorvete, uma coca, um chiclete, um boneco, um trem. Quero falar com a moça, ir ao banheiro, ir de novo ao banheiro, entrar na cabine do comandante, outra coca, o banheiro. Tudo aos gritos, como o pai ensinara e com certeza a mãe também.
Cada pedido pontuado por pancadas nas costas do assento de Blanche, quando a gracinha não vai se pendurar na poltrona e bater alegremente a mãozinha na cabeça de minha companheira. Você agüentaria quanto tempo? Quinze minutos? Dez? Cinco? Pois bem.
Nos tentamos ioga, meditação, Haré Krishna, mensagens transcendentais, aguardamos intervenção celeste de um súbito ataque cardíaco na fila traseira, um mini-relámpago bem pontual, bondade de Jupiter, massagem na base do polegar esquerdo, nada. Após uma hora - sim, sessenta minutos - viro para pedir pelo amor de Deus tenha a extrema gentileza de... "Ah! E vocês acham que é fácil manter quieto um garoto desta idade durante quase três horas? Vocês acham? Heim? Vocês acham mesmo?!!". Resignado, sento para mais ioga etc.
Fim da viagem, agora minha vingança. Saboreie. Na mesma fila, mas do outro lado, uma mãe, um filho, mesma idade. Tinha observado durante parte da longa tortura. Calmos, sorridentes, menino lendo um livro de imagens. Comeu seu sanduíche, bebeu água mineral, conversou com a mãe, dormiu no colo dela.
Ao me levantar, bem alto, na frente dos primatas vizinhos, falo com a jovem inglesa "What a nice and quiet child... So well behaved!". Ou seja, você soube educar seu filho, o outro criou um monstrinho. Saímos do avião triunfantes.
Chego a Elgin Crescent mais cansado que após quinze dias de andanças nos Pireneus subindo paredões. Lá me espera Sacha, o dono da casa. Vocês conhecem Sacha? Não? Grande figura. Me recebe com aquele imenso sorriso de bem-vinda. Ainda é bem jovem, mas já dá para sentir que vai ser um grande jogador de futebol. Você vê nos seus olhos, no entusiasmo em pegar a bola.
Resolvo contribuir, treinando o rapaz cada dia durante minha estadia em Londres logo antes do chá que irei tomar com a mãe no jardim já citado em outras páginas. O treino, sejamos francos, poderia durar mais tempo, mas minha idade rouba um pouco da concentração necessária para algo mais sério. Sem falar dos protestos do resto do corpo, né! O bom é que Sacha não se importa.
Sempre pronto para mais uma partida, nunca, porém, levará a mal minha desistência. Grande figura, este cara. Só pára de sorrir quando chega a mãe, Sophie, para dar-lhe a mamadeira. Esqueci de informar meu paciente leitor que ele tem em torno de onze meses e joga sentado, pois ainda nem sabe andar.
Prova que existem crianças de convívio possível.