AS INFÂNCIAS

Dimitri Ganzevelicht
02/11/2008 às 14:16
   Estou sentado num canto da sala com meus deveres de estudante aplicado. Cadernos, canetas e dicionários. Minha mãe, sentada junto à janela, lê o tijolo completo da obra de Dostoiewsky.
 
  Coragem, heim! Meu pai voltou do trabalho. Tira a gravata. Em que trabalha? Não faço idéia. Pelas conversas durante as refeições, escritório, contas, exportações. Palavras sem sentido nem atrativo.


  Minha irmã vai casar com um grego e toda a família se esforça, ao som da radiola, para aprender a dançar o sirtaki. Não é tão difícil assim. Não faremos feio no dia da boda. Também, é uma dança um pouco boba, não acha?


  No pomar atrás da casa, o cão ladra - aqui no Brasil, late -e brinca com o irmão mais novo. Algumas maçãs maduras já caíram junto ao pé das árvores. Cada ano são tantas que não dá para pegar todas.

  Domingo iremos à missa com os sapatos bem engraxados, tarefa que detesto. Estou falando de engraxar, claro. Porque, ir a missa é uma festa. Os cânticos são tão belos que esqueço o sermão interminável do velho padre.
 
  Após a missa iremos escolher uma grande torta para toda a família. Gosto quando tem muito chantilly. Sentaremos ao meio-dia para almoçar e só terei autorização de levantar depois da sobremesa, lá pelas 3 horas da tarde. É sempre assim nas cidades do interior...


  Você gostou da edificante agenda de minha longínqua infância?


  Felizmente, a não ser sobre minha mãe e Dostoiewsky, nada daquilo que acabo de contar é verdade. Seria caso de suicídio prematuro por excesso de conformismo.

Tá tudo inventado, como contraponto à realidade vivida de verdade.


  Cresci sem pai nem irmãos. Nem houve missa, já que somos anglicanos, por obra da avó paterna. Nunca tive um pomar com macieira. E mais: nunca fui um aluno aplicado, muito pelo contrário. Como descobri os horrores da disciplina escolar pela primeira vez aos nove anos (problema da guerra e de um pai omisso), nunca consegui me adaptar à rigidez dos horários e á prepotência sádica dos professores.

  Odiei o colégio de cabo a rabo, até começar a estudar, numa sorte de para-universidade imaginária, aquilo e mais nada que me interessava, largando o resto sem resquício de remorso.

  A melhor escola foi ler com obsessão e freqüentar compulsivamente museus, cinemas, óperas e salas de conferências.


  Cresci construindo uma cultura pessoal, sem estrutura acadêmica, sem passar pelo viés escolástico, na base do faro, da intuição. Hoje vejo tudo o que me faltou, nesta self-education.
 
  Não queria saber de matemáticas e agora me arrependo, pois elas conduzem à filosofia, ou vice-versa; outra falha da minha cabecinha.


  Preenchi lacunas com overdose de sensibilidade, de espírito de aventura e de palpitômetro. Deu no que deu. Até que poderia ter sido muito pior. Não virei bandido, tentei ser honesto na relativa medida da fraqueza humana.


  Hoje, estou assustado com o monte de coisas ainda por aprender, descobrir e fazer.

São tantas que vou ter que fazer uma lista.


  Sem mais demora.