Peguei a estatueta, como quem não quer nada e, examinando-a com ar de profundo tédio, perguntei ao vendedor "O que é isso?"
-Não sei. Deve ser artesanato peruano.
-Quanto quere por ela?
O preço seria o equivalente à corrida de ida e volta de táxi entre a Barra e minha casa no Santo Antônio.
Nem tentei pechinchar, como é de praxe. Paguei, levei.
Levei embrulhada numa folha de jornal uma das mais belas peças de minha coleção.
Artesanato peruano é que não é.
É uma estatueta em buxo, madeira dura de grande qualidade, muito usada na Europa, em pequenas peças de qualidade, além de rosários, nos séculos XVII e XVIII. Destes arbustos de alegres folhinhas verde-esmeralda, são feitas, dentre outras, as platibandas, sempre rigorosamente podadas, dos jardins de Versalhes.
Representa uma mulher do povo, mal vestida, carregando uma criança nos braços. Atados na cintura, uma pequena gamela e um jarro que suponho ser um jarro de leite. Estamos longe das charmosas e leves figuras campestres de um Watteau. O realismo anuncia Zola, Dickens e Rosselini.
Admirável o detalhamento dos rostos e da vestimenta, a perfeição de todos os detalhes, o cuidado do acabamento, além do estado praticamente impecável do conjunto. Só faltava o bico do calçado direito, facilmente consertado por meu amigo restaurador Cláudio.
A data - 1798 - gravada na base, acompanhada pelas três iniciais GLM, ainda não decifradas, dão quase todas as informações de origem. Trata-se sem dúvida de obra francesa de algum "petit-maître" impregnado dos ideais filosóficos que originaram a Revolução.
A humilde leiteira me lembrou imediatamente o Chardin dos temas sociais, quando a dura realidade dos campesinos miseráveis, denunciada por Voltaire, Diderot e Rousseau, começou a alertar a sociedade que chegara o tempo de reparar históricas injustiças.
Assim como a pequena leiteira francesa, cada objeto de minha compulsiva coleção, este amontoado de coisas heteróclitas, tem sua história. Cada um deles me fala de um momento, de uma paixão. Através deles realizo que sempre vivi movido a paixão, com os erros e excessos que todo stunami afetivo comporta.
Deve ser meu lado russo, este latente desprezo pela indiferença. Colecionar é possuir, claro. E mais. Também é roubar. Não, com certeza não o ato falho, mas roubar um momento da História, roubar uma fatia do Tempo, uma faísca da Eternidade...