Recebo uma carta gentilmente crítica e discretamente gozadora de um baiano encantado por morar na Europa.
O que, cá entre nos, entendo perfeitamente, já que eu, depois de algumas décadas naquele belo continente, berço de tantas culturas e abrigo de invejável qualidade de vida, eu, digo, cansado de tantos conformismos e tantos códigos, também escolhi me mudar, levando minha trouxa para o hemisfério sul.
Cada um decide de sua vida como bem entende.
Com a dita trouxa, verdade seja dita, também trouxe alguns conceitos e preconceitos. Nobody is perfect. Entre eles o apego à memória, este acúmulo fabuloso de finos lençóis bordados por gerações de artesãos, donas de casa, operários e artistas. São eles que fizeram a igreja de Montserrat, o Forte São Marcelo, a moqueca de siri, o toque do berimbau e os lindos saveiros que ainda resistem ao rolo-compressor da modernidade.
Os mesmos também fizeram a doçura sensual do porto da Barra, emoldurado por mais dois fortes, sua balaustrada que me lembra Biarritz, e não se esqueceram de, ao plantar amendoeiras frondosas, dar sombra aos pescadores, aos banhistas e aos últimos hippies deste século XXI. Meu amigo gostaria que, em nome do progresso, se retirassem as arcadas da Rue de Rivoli ou se construísse um Hilton de vinte andares no sevilhano bairro de Santa Cruz? Que se pintasse o Gran Canale de Veneza com estas abomináveis tintas acrílicas?
Lembro, insistindo, sim, que Salvador foi a primeira capital do Brasil e, por isso mesmo, merece um tratamento diferenciado preservando este longo momento histórico.
Afinal, três séculos não podem ser descartados como um shopping center obsoleto, não acha? O contestador declara que, por este tipo de atitude, é que esta cidade ainda é provinciana. Então, ser provinciano seria um ridículo defeito?
Você acha, honestamente, que morar em São Paulo, no Cairo, México ou Tókio, representa alguma superioridade? Não esqueça que o mundo, sendo uma bola, seu centro é exatamente onde cada um de nós deseja vê-lo. E para mim, Salvador é o centro, epicentro, do Universo! Olhe, rapaz, que morei em Londres, Paris, Lisboa, Madri e Casablanca, portanto de capitais - onde aliás, vivem montes de provincianos assumidos - também algo entendo. E mais, não satisfeito de ter escolhido uma desprezível província, ainda fui morar, por livre escolha, no bairro de Santo Antônio, mergulhando ainda mais no tal delicioso provincianismo. Pode?!
A maravilha deste globo reside na sua diversidade. Então, sejamos diferentes de Sófia ou Detroit, de Barcelona ou Dubai. E você - amigo que adivinho jovem - ajude-nos a manter aquilo que faz que você, emigrado numa cidade declaramente evoluída, ao sentir saudade, aqui desembarcando, ainda encontre seu belo e nostálgico Porto da Barra intocado nas suas características ultrapassadas, onde a preguiça é tão, mas tão deliciosa...