ATAQUE AOS INOCENTOS

Vitor Hugo Soares
14/06/2008 às 22:19

   Salvador, capital da Bahia, noite de sábado em Mussurunga, bairro popular às margens da Avenida Paralela, área de florescente expansão imobiliária (e muita especulação) bem no miolo entre o Centro Administrativo (CAB) e o aeroporto. Grupo de homens armados entra no bar onde trabalhadores se divertem no fim de semana bebendo cerveja e jogando dominó, como há décadas. "Deitem no chão", ordena um encapuzado, antes da saraivada de balas da maior chacina da história da cidade: sete mortos, três baleados e muitas suspeitas embaralhadas. Como de costume.  

   Tóquio, capital do Japão, início da tarde de domingo, bairro de Akihabara, zona comercial mundialmente famosa, visitada por levas de turistas do mundo inteiro à procura das últimas novidades em produtos eletrônicos. Tomohiro Kato, um rapaz de 25 anos dirige perigosamente uma camioneta de entregas. Pára o carro, desce na rua em pânico com uma faca amolada na mão e começa o ataque a transeuntes: sete mortos, vários feridos, uma cidade atônita, ainda em busca de explicação para a tragédia.  

  Separadas geograficamente por mais de 18 mil quilômetros - mais de 23 horas em vôo de Boeing - e por séculos de cultura e civilização, as populações de Salvador e Tóquio jamais estiveram tão próximas quanto na estupefação dos seus habitantes diante destas duas tragédias com uma marca comum: o ataque a inocentes.  

   Em Salvador, pedra de toque do tabuleiro da "nova política" baiana, os olhos e atenções (à direita, esquerda e centro) dão impressão de nada enxergar. Voltam-se, unicamente - ataque coletivo de cegueira? - para as articulações e barganhas na formação das chapas que irão disputar o Palácio Thomé de Souza nas eleições municipais de novembro, sem debate sobre projetos, princípios, ou temas delicados como o massacre de Mussurunga.  

   Com o governador Jaques Wagner (PT) na Europa, e o prefeito João Henrique (PMDB) enrolado no labirinto da tentativa de reeleição, as famílias das vítimas não receberam uma palavra sequer de solidariedade oficial. Do governo federal (o presidente Lula há poucos dias reprisou, em palanque do PAC instalado na Região Metropolitana de Salvador, o sentimento espiritualista de que "em alguma geração nasci baiano"), também nem um pio. Nem mesmo dos ministros da terra: Gilberto Gil (Cultura), Orlando Silva (Esportes) e Geddel Vieira Lima, da Integração Nacional.  

   No vácuo, a polícia aposta nas surradas teorias do medo. Lima peças para tentar encaixar Mussurunga no molde do quebra-cabeça tradicional das brigas de quadrilhas por pontos de drogas, sem maiores contestações. Assim, simplifica-se o grave significado da chacina de sábado, e buscam-se "os culpados de sempre", como na determinação do chefe de polícia a seus agentes no clássico filme "Casablanca".  

   Enquanto isso, o barulho dos fogos e a fumaça das fogueiras nos festejos juninos ocupam os espaços informativos, passados os primeiros momentos de choque e indignação pública trazidos pela tragédia. Em Mussurunga, multiplicam-se as placas de "VENDE-SE" nas portas das residências e casas comerciais, nos cadernos imobiliários dos jornais e nos portais de negócios na Internet.  

   O medo transtorna e põe em fuga os habitantes - servidores públicos, comerciários, bancários e prestadores de serviços principalmente - do aprazível e, até recentemente, tranqüilo bairro soteropolitano. Planejado e fundado em 1978, Mussurunga tem como vizinhos o Palácio da Governadoria e a Secretária de Segurança.   Ao pé do bairro, a Avenida Paralela corre em destino aos pontos mais exclusivos e sofisticados do turístico litoral norte de Salvador. Os terrenos na zona foram supervalorizados pela expansão imobiliária, enquanto a Câmara de Vereadores discutia o Plano de Desenvolvimento Urbano (PDDU), que liberaliza os gabaritos nas construções de edifícios em zonas próximas à orla de praias, recentemente sancionado pelo prefeito.  

   A incontida especulação imobiliária fez o preço do metro quadrado de terreno na área da Paralela subir em até 560%, nos últimos meses, segundo levantamento divulgado ontem no jornal "A Tarde". É fácil deduzir, portanto, que os olhos de cobiça sobre Mussurunga não são apenas das quadrilhas em guerra pelo controle de pontos de droga na terceira maior capital do País.  

  Leio nos jornais da semana, que a sociedade japonesa busca resposta para o que teria levado Tomohiro (preso pela polícia depois de matar sete e ferir 10 inocentes transeuntes em Akihabara), "bom aluno", inteligente o suficiente para ingressar em uma das escolas mais competitivas de sua vizinhança, a tamta violência, aparentemente a esmo, em uma capital com os menores índices de crimes violentos do planeta. Ministros japoneses discutiam, na última quinta-feira, a possibilidade de restringir o comércio de facas no Japão. O ministro da Educação, Kisaburo Tokai, diz que estuda possibilidade, também, de fazer reuniões "com especialistas em ciências do cérebro sobre a situação das crianças japonesas".   Pode não dar em nada, mas é melhor e mais alentador que o véu de silêncio que em Salvador, na Bahia e no País, começa a cobrir o ataque aos inocentes de Mussurunga.