ÚLTIMO DESEJO DE MARTIN LUTHER KING

Taylor Branch
12/04/2008 às 14:01

  Há 40 anos, no dia 31 de março, na Catedral Nacional, o reverendo Martin Luther King Jr. fez aquele que seria o seu último sermão de domingo, quando estava a caminho de Memphis. Naquela mesma noite, em 1968, o presidente Johnson chocou o mundo ao anunciar que não disputaria a reeleição.

   Eu era aluno do último ano de faculdade. A minha mãe me visitava, quatro noites depois, quando toda a conversa subitamente cessou em um restaurante cheio de gente. Um garçom anunciou que King tinha sido assassinado.
Direitos civis, Vietnã, King, Memphis - estes são marcos históricos. Mesmo assim, este ano é um divisor de águas. Como King viveu apenas 39 anos, de agora em diante fará mais tempo que ele partiu do que esteve entre nós. Desde Memphis, duas gerações atingiram a maturidade.

   Isto não significa que o nosso entendimento seja acurado ou completo. Uma certa dose de verniz e mitologia é sempre inevitável em se tratando das grandes figuras, seja George Washington cortando uma cerejeira, Abraham Lincoln serrando um dormente de ferrovia ou King pregando um sonho de cidadania igualitária em 1963. Porém, bem além disso, nós envolvemos King e a sua era em um mito impregnante, falso para a nossa herança histórica e perigoso para o nosso futuro. Nós distorcemos toda a nossa cultura política para evitar as lições da era de Martin Luther King.

   Ele próprio nos advertiu. Quando subiu ao púlpito, naquele domingo, 40 anos atrás, King adaptou um dos seus sermões padrões, "Remaining Awake Through a Great Revolution" ("Permanecendo Desperto Durante uma Grande Revolução"). A partir da alegoria de Rip Van Winkle, ele falou de um homem que dormiu antes de 1776 e acordou 20 anos depois, em um mundo repleto de roupas e costumes estranhos, dotado de um vocabulário inteiramente novo e marcado por uma preocupação assombrosa com o plebeu George Washington, e não com o rei George III.

   King suplicou a sua platéia que não dormisse enquanto o mundo clamava continuamente por liberdade. Quando os antigos hebreus obtiveram uma libertação miraculosa do cativeiro no Egito, muitos sentiram um intenso desejo de voltar atrás. A família do faraó parecia ser melhor do que o pacto oferecido por Moisés, e assim os hebreus vagaram pelas terras desertas. Eles demoraram 40 anos para recuperar o rumo. Passaram-se 40 anos desde que King se foi, mas nós ainda dormimos sob o reino do faraó. É hora de acordar.

   King estava em Memphis para participar de uma passeata em apoio aos trabalhadores do setor de saneamento. Dois deles, Echol Cole e Robert Walker, haviam sido esmagados em um acidente provocado por um defeito mecânico. As leis da cidade proibiam os funcionários negros de se abrigarem da chuva, a não ser na carroceria dos caminhões compressores, junto com o lixo. Mas pela primeira vez uma marcha de King descambou para desordem e saques.

   Quando apareceu em Washington na manhã daquele domingo, ele estava longe de ser a pessoa mais amada dos Estados Unidos. Manchetes em Memphis o chamavam de "Galinha a la King", acusando-o de ter corrido da sua própria briga. O "Saint Louis Globe-Democrat" chamou King de "um dos homens mais ameaçadores dos Estados Unidos de hoje", e publicou uma charge na qual o ativista mirava uma pistola, em meio a uma nuvem de fumaça de pólvora, com a legenda: "Não estou disparando a arma. Estou apenas puxando o gatilho".

   Assim, King estava no púlpito como um homem marcado, ridicularizado e repreendido, e também afligido por conflitos interiores. Mas, como sempre, ele alçou a esperança que trazia no fundo da sua alma. King rogou à congregação que se mantivesse viva e desperta para as grandes revoluções que estavam em andamento. "Digo a vocês que a nossa meta é a liberdade", bradou. "E eu acredito que chegaremos até lá porque - por mais que o país desvie-se deste objetivo - a meta dos Estados Unidos é a liberdade!"

  Nós enfrentamos um precedente assustador na História. A nossa nação dormiu durante décadas, enfeitiçada por mitos referentes a raça. Eu cresci aprendendo que a Guerra Civil dizia respeito ao federalismo, e não ao escravagismo. Os meus livros escolares chegavam até a utilizar um termo religioso, os "redentores", para descrever os políticos que restauraram a supremacia branca com o terrorismo da Ku Klux Klan no final do século 19. A Hollywood moderna foi fundada sobre o poder emocional desse mito, conforme se constata no filme "O Nascimento de Uma Nação" ("The Birth of a Nation", EUA, 1915). Forças ditas progressistas defendiam a hierarquia racial por meio da pseudociência da eugenia.

  Mais de uma vez a cultura dominante virou a História de pernas para o ar a fim de sentir-se confortável. E quando um movimento pelos direitos civis surgiu a partir de grupos marginais formados por empregadas domésticas e arrendatários, fazendo com que não fosse mais respeitável defender a segregação racial, vozes magoadas mais uma vez se adaptaram para maldizer o governo como agente da calamidade geral. Nós pintamos a era de King como uma época de licenciosidade desbragada e sem objetivo, cheia de hippies comportando-se como doidos.

  A palavra-chave do discurso degenerou-se, passando de "movimento" a "onda". Na era King, a palavra "movimento" deixou de ser uma inspiração pessoal e virou salto de fé, e depois evoluiu da descoberta e sacrifício compartilhados para a esfera da luta por direitos, gerando movimentos semelhantes até que locais famosos nos quais se lutou pela liberdade, de Selma ao Muro de Berlim, fossem literalmente capazes de sentir a movimentação da História.

  Agora temos em vez disso as "ondas", sugerindo que não está em jogo no debate político uma direção real, e tampouco qualquer conseqüência, exceto para os protagonistas de um determinado jogo. Tal linguagem acolhe o cinismo, ao reduzir a política ao entretenimento.

  O equilíbrio democrático dorme há 40 anos, e nos deparamos com um mundo que é algo como uma história de Rip Van Winkle de trás para frente. Nós acordamos e vemos Tiger Woods, Condoleezza Rice e Barack Obama, enquanto o nosso governo exige o domínio arbitrário por meio do secretismo, de conquistas e de calabouços. O rei George III parece ter ressuscitado.

   Por favor, resista a enxergar nisto qualquer conotação partidária. O nosso problema é bem maior do que isso. De fato, creio que o desafio mais urgente para os admiradores de King é reconhecer a nossa própria cumplicidade nos mitos sufocantes a respeito da história dos direitos civis. Aliados de King, derrotados e tendo sofrido por muito tempo, descartaram-no como sendo um moderado cansado muito antes do início da campanha reacionária no sentido de transformar a palavra "liberal" em um beijo de morte para candidatos de todo o país. De modo similar, forças chamadas de radicais e militantes voltaram-se contra os governos liberais por estes terem demorado tanto tempo para responder à injustiça racial, e depois à Guerra do Vietnã. Somente uma convergência da esquerda e da direita poderia causar uma erosão tão duradoura da promessa do governo livre.

   Vários dos camaradas mais próximos de King rejeitaram este compromisso para com a não violência. O movimento dos direitos civis criou ondas na História enquanto permaneceu não violento, e a seguir estacou. Sem dúvida, o instrumento mais poderoso para a reforma democrática foi o primeiro a tornar-se antiquado. Ele desapareceu entre os intelectuais, nos campi universitários e nas ruas. Até hoje quase ninguém pergunta por quê.

   Nós temos que voltar a reivindicar a ampla gama de pontos positivos do movimento dele. Para King, a questão racial fazia parte da maioria das outras questões, mas, sozinha, não definia nada. A sua mensagem atraente estava enraizada no contexto maior da não violência. O seu objetivo declarado sempre foi o de redimir a alma dos Estados Unidos. Ele calcou um pé na Constituição e o outro nas Escrituras. "Nós conquistaremos a nossa liberdade porque a herança da nossa nação e o desejo eterno de Deus estão encarnados nas nossas demandas que ecoam", disse ele diversas vezes. Enxergar King e os seus colegas como algo menos do que os fundadores modernos da democracia - até mesmo como reconciliadores e curadores de feridas raciais - é diminuí-los sob o feitiço do mito.

   King afirmou que o movimento libertaria não só o povo negro segregado, mas também os brancos do sul. Sem dúvida isto é verdade. Nunca se ouviu falar na região do Sun Belt quando o sul era segregado. O movimento disseminou prosperidade em uma região anteriormente imprópria até mesmo para times esportivos profissionais. O meu prefeito em Atlanta durante a era dos direitos civis, Ivan Allen Jr., disse que assim que a legislação dos direitos civis foi assinada em 1964, nós construímos um estádio de beisebol em um terreno do qual não éramos proprietários, com dinheiro que não tínhamos, para um time que não criamos e logo atraímos o Milwaukee Braves. Miami organizou uma equipe de futebol americano chamada Dolphins.

   O movimento também acabou com o estigma que pairava sobre a política branca sulista, criando uma competição bipartidária. Ele abriu as portas para os deficientes, e começou a reduzir o medo entre os homossexuais antes que a idéia moderna de "gay" passasse a ser utilizada. Durante 2.000 anos de judaísmo rabínico pouco se pensou em rabinos (ou, melhor dizendo, rabinas) do sexo feminino, mas a primeira ordenação de uma delas ocorreu pouco depois do movimento lançar uma luz nova sobre o significado de almas iguais. Agora nós não paramos para pensar nas rabinas, nas precentoras e nas sacerdotisas e bispas episcopais como figuras polêmicas, com as suas colegas das mais diversas formações. Atualmente os pais aceitam como corriqueiras as oportunidades que os filhos herdaram do boicote aos ônibus de Montgomery.

   É ao mesmo tempo correto e político para todos os indivíduos, incluindo os milhões que vêem com bons olhos, ou os que são indiferentes em relação ao movimento pelos direitos civis, ou os rudes e ressentidos, observar que eles, também, assim como os seus herdeiros, estão juntos conosco sobre os ombros de Rosa Parks, Medgar Evers e Fannie Lou Hamer.

   King demostrou de forma mais profunda que em um mundo interdependente, o poder duradouro cresce em oposição à violência, e não aliado a ela. Tanto a Guerra Fria quanto o apartheid sul-africano terminaram com os acordes do hino libertário "We Shall Overcome", desafiando todos os preparativos para o Armagedon. O movimento dos direitos civis continua sendo um modelo para a nova democracia, tristemente negligenciada no próprio local em que nasceu. No Iraque atual, estamos, em vez disso, atolados no modelo do Vietnã. Não existe um campo mais importante ou negligenciado do que o estudo do relacionamento entre poder e violência.

   Nós recuamos da não violência e assumimos um risco. King viu isso no coração da democracia. A nossa nação é uma grande catedral de eleições - eleições não só para o Congresso ou para presidente, mas também para as decisões da Corte Suprema e de incontáveis júris. As eleições governam as diretorias das grandes corporações e das pequenas instituições de caridade. De forma visível e invisível, tudo depende dos votos. E cada voto não passa de uma partícula de não violência.

  Assim sendo, o que deveríamos fazer, agora que 40 anos se passaram? Como restauraremos a nossa cultura política, da onda para o movimento, da balbúrdia para o objetivo? Devemos agir, perguntar, estudar a não violência e reivindicar a nossa história.

  O que King prescreveu no seu último sermão de domingo tem início com a história de Lázaro e Dives, no 16° capítulo do evangelho de São Lucas. Narrado inteiramente pela boca de Jesus, trata-se de uma história com Abraão, o patriarca do judaísmo, passada no além. Não existe nada igual na Bíblia.

  King adorava essa parábola como o contexto para o famoso sermão de 1949 feito por Vernon Johns, o seu predecessor na Igreja Batista da Avenida Dexter, em Montgomery. Lázaro era um mendigo aleijado que certa vez pediu esmolas, sem que ninguém se dignasse a notar a sua presença, em frente aos suntuosos portões de um homem rico chamado Dives. Ambos morreram, e Dives atormentou-se ao ver Lázaro, o mendigo, seguro sob a proteção de Abraão. O restante da parábola é uma discussão entre Abraão e Dives, entre o céu e o inferno.

  Dives primeiro pediu a Abraão que "mandasse Lázaro" com água para refrescar os seus lábios ardentes. Mas Abraão disse que havia um "grande abismo" entre eles, que jamais poderia ser atravessado. No seu sermão, Johns fez uma conexão entre esse abismo e a segregação racial.

   Mas, segundo Johns, Dives não estava no inferno por ser rico. Ele estava longe de ser tão rico quanto Abraão, um dos homens mais ricos da antiguidade, que se encontrava no céu. E Dives também não estava no inferno por ter deixado de dar esmolas a Lázaro. Dives estava lá porque jamais reconheceu Lázaro como um ser humano. Mesmo ao se deparar com o veredicto eterno, ele falou apenas com Abraão e desprezou o mendigo, tratando-o como um servo e na terceira pessoa - "mande Lázaro".

  Os sermões de King acrescentaram mais camadas significativas a esta parábola. Ele disse que devemos aceitar o homem rico sofredor não como um pecador comum e asqueroso. Quando teve a água recusada para si, ele imediatamente preocupou-se com os seus cinco irmãos. Dives pediu novamente a Abraão que enviasse Lázaro, desta vez como mensageiro para advertir os irmãos a respeito dos seus pecados. Diga a eles que sejam bondosos com os mendigos que ficam do outro lado do muro. Por favor, faça algo, para que eles não terminem aqui como eu.

  King disse que Dives era um liberal. Apesar do seu próprio destino, ele quis ajudar os outros. Abraão negou também este pedido, dizendo a Dives que os seus irmãos já contavam com amplas advertências contidas na lei do Torá e nos livros dos profetas hebraicos. Mesmo assim Dives persistiu, dizendo: "Não, Abraão, você não entende - se os irmãos virem algo realmente ressurgindo do mundo dos mortos e avisando-os, eles entenderão".

  Jesus cita Abraão negando este pedido. Se os irmãos não aceitam o cerne dos ensinamentos do Torá e dos profetas, eles não acreditarão nem mesmo em um mensageiro que renasce do mundo dos mortos. King afirmou que esta parábola de Jesus remete a diferenças entre o judaísmo e o cristianismo. A lição subjacente a qualquer teologia é a de que devemos agir em relação a toda a criação vendo os outros como almas e vozes iguais. A alternativa para isso é o inferno, algo que King em certas ocasiões definiu como sendo a dor que infligimos a nós mesmos ao recusarmos a graça de Deus.

   A seguir King retornou a Memphis para solidarizar-se com os trabalhadores oprimidos, com as famílias de Echol Cole e Robert Walker. Vocês devem ter visto os cartazes usados na greve dos trabalhadores do setor de saneamento, com os dizeres, "Eu Sou um Homem", significando que eles não eram lixo que pudesse ser esmagado e ignorado. Para King, a resposta foi um chamado patriótico e profético. Ele desafia todos a encontrarem um Lázaro em algum lugar, das nossas prisões lotadas à terra que sangra. Essa busca em comum transforma-se na centelha dos movimentos sociais, e é, portanto, o motor da esperança.