Sei que a comparação é grosseira, mas na minha opinião, assim têm agido boa parte de nossos auditores, promotores, juízes e ministros do trabalho quando o assunto é a CLT.
De fato, a CLT está de tal modo impregnada nas suas vidas, nos seus espíritos e no seu pensar, que eles parecem não ter a mínima idéia do que se encontra antes ou até mesmo além dela.
Realmente, por mais que queiram ou tentem afastar-se da sua zona de influência, acabam sempre vítimas daquela conhecida armadilha de que também são presas aquelas pessoas incautas que, tentando não pensar em nada, iludem-se de que, ao pensar que não pensam, conseguem de fato não pensar.
Assim é que, sendo a CLT o pano de fundo de toda a sua ciência e espírito, não percebem que ela, a pretexto de encartar certos êxitos trabalhistas, acaba, isto sim, por ofuscar e até mesmo por tomar o lugar de um direito muito mais básico e vital para o trabalhador; direito esse que se, por um lado, não é propriamente da pessoa que JÁ trabalha, e se, por outro, ainda está longe de ser um completo triunfo, é, acima de tudo, um direito do próprio ser humano...:
Refiro-me, pois, ao direito ao "Trabalho Digno".
Sim, Trabalho Digno, esse direito tão comezinho e ao mesmo tempo tão recusado que, tendo a ver com a própria Dignidade da Pessoa Humana - e, portanto, com os seus sentimentos de amor-próprio, respeito a si mesmo e decência - não deveria jamais prorromper como um direito condicionado, mas, assim como o próprio direito à vida, como um direito condicionante de todos os demais.
Sucede que, muito embora haja um absoluto consenso quanto à importância de se garantir a dignidade da pessoa humana, toda uma tempestade de polêmicas, celeumas e discussões pode rapidamente passar a ter lugar, caso a respectiva abordagem, descendo a níveis menos abstratos, venha a culminar exatamente na conceituação do Trabalho Digno.
E isto se dá, com efeito, porque, muito antes de que seja possível abrir qualquer foro de discussão a respeito, os "amancebados da CLT" já vão logo sentenciando que só há uma forma de se garantir o trabalho digno: ou seja, pela própria CLT.
Não percebem, pois, a própria sandice e pequenez desse entendimento, porquanto, ao adotar essa postura de absoluto fanatismo, nem sequer se dão conta de que, nesse nível ainda sociológico das investigações, não está em jogo negar ou referendar a autoridade jurídica da CLT.
Deveras, não reparam que, ainda que a CLT fosse mesmo a única entidade legalmente autorizada a dispor sobre o trabalho no Brasil, ainda assim ela não seria jamais a exclusiva paladina, nem do trabalho mais digno, nem do trabalho mais justo.
Nesse sentido, aliás, basta imaginar ser perfeitamente possível a ocorrência das seguintes combinações:
i) trabalho legal e digno (ou seja, trabalho não só "celetista", mas também decente); ii) trabalho ilegal e indigno (ou seja, trabalho não "celetista" e vil); iii) trabalho legal e indigno (ou seja, trabalho "celetista", mas, ainda assim, vil); iv) trabalho ilegal e digno (ou seja, trabalho não "celetista", porém decente).
Interessante notar, todavia, que do ponto de vista sociológico - e aqui, também constitucional (visto que a dignidade da pessoa humana vem na frente das demais rubricas) - esses binômios podem ganhar um significado surpreendente, pois:
i) trabalho legal e ao mesmo tempo digno = trabalho justo e, portanto, constitucional; ii) trabalho ilegal e ao mesmo tempo indigno = trabalho injusto e, portanto, inconstitucional; iii) trabalho legal, porém indigno = trabalho injusto e, portanto, inconstitucional; iv) trabalho ilegal, porém digno = trabalho justo e, portanto, constitucional
Dito assim, o caso, no entanto, é que pelo menos duas dessas constatações não querem deixar de ecoar: a) nem todo trabalho "celetista" é necessariamente justo e constitucional; b) nem todo trabalho não "celetista" é necessariamente injusto e inconstitucional.
No plano dessa análise, é importante deixar claro, portanto, que um trabalho será tanto mais justo e constitucional quanto mais digno ele puder ser, pouco importando, por outro lado, qual seja a sua verdadeira natureza jurídica, bem como qual seja o seu efetivo status em relação à legislação inferior.
Evidentemente que, com isso, eu não estou aqui a afirmar que a CLT seja uma excrescência, nem tampouco a pôr em dúvida a sua importância enquanto ferramenta de defesa das conquistas do trabalhador. Pelo contrário, em que pese o indiscutível anacronismo de sua base histórica, a obsolescência de muitos de seus princípios e o sem-sentido de inúmeras de suas regras, o fato é que a CLT, sem dúvida nenhuma, ainda hoje encarna uma série de direitos e garantias dos quais, frente ao poderio explorador do capital, decerto que o trabalhador não poderá abdicar tão cedo.
Ocorre que, assim como, por exemplo, um copo é apenas um utensílio para se matar a sede, a CLT é apenas um mecanismo (nem o único e nem o melhor) de se garantir alguns direitos mínimos do trabalhador. Ou seja, ela não é um fim, mas um meio!
Daí vai, nesse viés, que a sua defesa fanática e intransigente nada mais é, em verdade, do que a defesa do copo em detrimento da sede, do trabalho em detrimento do trabalhador, sendo, por assim dizer, um estapafúrdio triunfo do instrumental sobre o essencial.
Pois nas discussões que envolvem o cooperativismo do trabalho, creio que é exatamente isto o que está ocorrendo.
Sim, pois malgrado as barbaridades que são cometidas por aí afora, tenho acompanhado inúmeros casos de cooperativas que, mesmo assegurando ao seu associado não só trabalho, mas também um nível de renda e de benefícios incomparavelmente superior ao que ele faria jus pela CLT, têm sido implacavelmente perseguidas pelas autoridades públicas.
Ora, e perseguidas por quê?
Evidente que por precarização de mão-de-obra não pode ser!
E não sendo por precarização, é claro que não sobra espaço para nenhuma dúvida: perseguidas pelo simples fato de cumprirem o seu papel do lado de fora da CLT!
Pois é isso mesmo, minha gente: perseguidas não por explorar ou afrontar a dignidade do trabalhador, mas justamente por garanti-la de uma forma não convencional.
Para mim, quero ressaltar, nada me tira da cabeça que esse é não só o verdadeiro pomo da discórdia, mas a perfeita explicação, quiçá, do maior dos disparates cotidianamente cometidos pelo "partido dos celetistas", o qual, na sua sanha purificadora, não hesita em preferir que os trabalhadores sigam todos para o olho da rua a vê-los ganhando o seu pão de cada dia como cooperados.
Todavia, devo confessar que esse tipo de postura, antes de me chocar, imediatamente me remete ao "Tempo das Grandes Fogueiras" em que os beatos piromaníacos, em nome da CLT ("Consolidação das Leis Teocráticas"), mandavam para a grelha todos aqueles pobre-coitados que, mesmo tementes a Deus, ousavam amá-lo sem o intermédio da igreja...
Mas não é só. No meu modo de ver, é exatamente aí onde também jaz uma das mais corriqueiras arbitrariedades perpetradas tanto pelo MPT, quanto, de uma certa forma, pelo próprio Poder Judiciário, e isto porque, uma vez que o caso não seja de precarização de mão-de-obra, óbvio que jamais se poderia falar em fraude, mas quando muito em mera ilegalidade.
Assim é que, só por isso, tenho cá para mim que, sempre que o Ministério Público do Trabalho estiver diante de um caso em que a cooperativa esteja formalmente em ordem e o cooperado fruindo valores e benefícios comparavelmente iguais ou melhores do que os da CLT, ele não terá o direito de propor o termo de ajuste de conduta e muito menos o de ajuizar eventual Ação Civil Pública.
E notem que eu não estou almejando aqui ressuscitar os velhos argumentos que, pendendo mais para o lado processual, até hoje põem em xeque a legitimidade do Ministério Público enquanto defensor dos interesses difusos dos trabalhadores.
Não, não se trata disso. Estou aqui, na realidade, levantando um óbice mais essencial, mais capital, é dizer, um óbice que impede a atuação do MPT, não por falta de competência ou de investidura, mas simplesmente porque retira dele todo o objeto da sua insurgência, todo o objeto da sua atuação (mais ou menos assim como o caso de um herói que, desejando impressionar a mocinha, não tivesse vilões para capturar).
Sim, pois quando uma cooperativa, ao funcionar como tal, proporciona trabalho digno para o seu sócio, que tipo de fraude pode ela estar cometendo?
Pelo contrário, não estará ela justamente cumprindo com o papel para o qual ela foi criada e, bem assim, não estará ela justificando a sua própria razão de ser?
Definitivamente, senhores, cooperativa que funciona de acordo com a Lei nº 5764/71 e que garante trabalho/remuneração decente aos seus associados não comete fraude.
E ouso ir ainda mais longe: na maior parte das vezes, não comete fraude mesmo que o vínculo empregatício venha a ser eventualmente detectado.
Primeiro, porque, muito embora haja na CLT uma norma estatuindo a primazia da realidade, nessa mesma CLT existe uma outra que diz que não haverá qualquer relação de vínculo entre as pessoas do trinômio cooperado/cooperativa/tomador - circunstância essa que, no mínimo, suscita uma tese excludente por parte dos cooperativistas (de fato, essa é uma tese que, mesmo não encontrando muito eco no judiciário, é pra lá de respeitável, de forma que, só por isso, mais do que afastar qualquer idéia de fraude, chega mesmo a pique de justificar uma atuação livre e irrestrita das cooperativas - ao menos até que uma eventual decisão judicial transite em sentido contrário).
Segundo, porque a relação empregatícia, na maioria dos casos, está longe de ser uma meta que porventura o contrato cooperativo objetive alcançar e ao mesmo tempo burlar, podendo ser uma simples conseqüência, fruto de fatos e circunstâncias muitas vezes alheios à própria vontade da cooperativa.
Terceiro, porque o vínculo empregatício, não raro, ao revés de ser flagrante, é o resultado de um enorme esforço interpretativo do Judiciário, intimamente condicionado que está a este ou àquele entendimento sobre pessoalidade, a este ou aquele entendimento sobre subordinação e assim por diante (de tal modo que, onde a fiscalização e o MPT eventualmente enxergarem vínculo, não necessariamente a cooperativa e os seus tomadores de serviços serão obrigados a enxergar).
E quarto, porque, ainda que o vínculo venha a ser constatado, a intenção deliberada de fraudar há de ser obrigatoriamente provada - e não meramente presumida (ora, fraude, como o próprio "Aurélio" dá conta, é: "1. Logro; 2. Abuso de confiança; ação praticada de má-fé; 3.contrabando, clandestinidade; 4. Falsificação, adulteração." - ou seja, é ação deliberada).
Por tudo isso é que eu, de minha parte, já estou plenamente convencido: haja o que houver, venha o que vier, as cooperativas que souberem respeitar os seus cooperados, a Constituição e, de uma certa forma, até mesmo a CLT, são aquelas que sem dúvida nenhuma SOBREVIVERÃO.
Quanto às outras, só o tempo dirá...