O MUSEU DO GONZAGÃO

Tasso Franco
28/04/2007 às 19:00
    Vocês já devem ter ouvido falar em Januário, pai de Luís Gonzaga, o Rei do Baião, morador do sertão de Pernambuco e mestre sanfoneiro de oito baixos, uma sanfoninha de fole prateado. Mestre é aquele camarada que toca, conserta e faz sanfona. Januário era assim: puxava enxada na roça da Serra do Araripe, puxava o fole prateado, remendava e produzia esse instrumento. Que, como se sabe, bem tocado como foi o caso do mestre Januário, vai do xote ao baião; do forró ao frevo.

     Seu filho Luís, que compôs com o advogado cearense Humberto Teixeira, o clássico sertanejo Asa Branca, em 1947, quando eu ainda usava fraldas, também compôs com o mesmo cabeça chata da terra do Padim Ciço, "Respeita Januário", uma toada que fala da categoria do mestre Januário com a oito baixos à tiracolo, fazendo nome e fama de Itaboca à Rancharia; de Salgueiro a Bodocó; rimando que Januário era o maior.

    Pois dito; no Museu do Gonzagão, aqui perto da capital da Bahia, em Serrinha, só 180 quilômetros de estrada, há uma dessas fole prateado, raríssima (não a única no Brasil) do mestre Januário à mostra graças a abnegação de um visionário da cultura, autodidata das artes, Guilherme Machado dos Santos. Ex-discotecário da Rádio Piatã nascido olhando as águas do Rio Paraguaçu descerem rumo à cidade da Bahia de sua natal Muritiba, um dia entendeu que sua estrada era o sertão, fincou pés na terra onde Judas perdeu as botas e pronto.

    Montou casa na antiga rua da Coréia, centro da cidade, constituiu família, se transformou em representante comercial de móveis, mas, desde que foi glosado pelo próprio Luís Gonzaga, o qual, observando-o cabeludo arreliou dele e disse que iria tocar o Xote dos Cabeludos, em sua homenagem (obviamente uma pirraça) tomou gosto pelo exuense e foi juntando peças do Rei do Baião e transformou parte das dependências de sua casa no Museu do Gonzagão.

    Agora, pense num disco de Luís Gonzaga que Guilherme não tenha? Pense numa fita de cinema? Pense na certidão de casamento do sanfoneiro? Vá pensando em coisas, pois, no Museu de Gonzagão tem um pouco de tudo do Rei do Baião e até a fole prateado de Januário, enrolada num plástico grosso e transparente para o cliente ver e não estragar, conseguida depois de muita pesquisa e conquistada nas mãos de uma pessoa em Ouricouri, sertão de Pernambuco.

    As peças do museu estão acomodadas em quatro cômodos: no primeiro, na entrada frontal, a sala dos Gonzaga, a fole prateado, discos, fotos, livros e outros documentos sobre o rei do Baião; na sala adjacente, à direita, peças do cangaço - armas de fogo, punhais, selas, perneiras de couro, fotos da turma de Lampeão e seus seguidores; numa outra sala uma coleção de 227 rádios, desde zilomagues de madeira ao olho mágico holandês; e num quatro compartimento, os centenas de discos bolachões e equipamentos de gravações em Cds.

    Mania doida essa de Guilherme. Trabalhou na Rádio Piatã de 1979/83 e depois começou a colecionar as peças. Só iniciou a montagem do museu a partir de 1998. Conta como auxiliar voluntário um outro visionário do sertão, pesquisador de história distrital, Manoel Messias, o Galeginho, de uma região de Serrinha (Subaé) que a tradição oral popular diz ter sido habitada por alguns holandeses no século XVIII, presumivelmente. Daí Galeguinho e outros - galeguinhas e galeguinhos, lindos olhos, branquinhos que povoam aquele espaço extra-terrestre do sertão baiano.

    Guilherme, o dom Quixote; e Galeguinho, o Sancho Pança, contam tudo ao visitante que vai ao Museu do Gonzagão. - Tá vendo essas três colheres de prata aqui? Foram da turma de Lampeão. Toda vez que o capitão experimentava uma comida punha uma dessas colheres dentro da refeição. Se a colher escurecesse, a comida tava envenenada. O anfitrião ou cozinheiro tava frito. Era passado a fio do punhal.

    Lá está o punhal. Também raríssimo, porque um dos poucos punhais vistos em museu no formato de 90 centímetros de comprimento, desses que aparecem nas fotos da turma do cangaço, em retratos de pose familiar. Emenda o Galeguinho auxiliando Guilherme: - Esse punhal (retira da bainha) era enfiado na altura da clavícula do condenado, perfurava o coração, cortava as tripas e saía na virilha. Pronto, tava o cabra sangrado e despachado para as profundas - arremata.

   - Aqui está a certidão de óbito de Cristiano Gomes, o Corisco, passada na comarca de Miguel Calmon, em maio de 1940; e aqui o paralelo belga datado de 1897 e usado por um dos cangaceiros; adiante o bacamarte ou riuna do cangaceiro Gitirana; punhais com cabos de ouro e brilhantes; essa sela aqui que montou a turma do cangaço - vai contando Guilherme sem parar, como uma metralhadora de entusiasmo.

    A visita vai chegando ao final. A parte mais emocional para Guilherme é a sua coleção de rádios. Diz que veio do rádio, curte o rádio, trabalha ainda hoje para si ouvindo rádio e coleciona esses 227 aparelhos por amor. Cada um com sua história. Cada qual com sua trajetória de vida.

    - Este aqui é raríssimo: é um RCA Vitor 3 válvulas de 1930; esse um baquelita GE 1930; esse um zilomag de espuma; esse foi da cangaceiro Dadá; este um holandês do tempo da segunda guerra mundial.

    Vamos fechar o pano da visita. Guilherme é um desses produtores e abnegados da cultura brasileira que fazem as coisas sem a ajuda do poder público, sem choramingar nas ante-salas oficiais, sem se queixar da falta de incentivos e outras bobagens tão comuns nesse segmento. Daí a importância maior do Museu do Gonzagão, pequeno, é verdade; porém, grande em paixão e coração.

   Além do que, com a porta aberta para todos, sem custar um centavo de pago. E, tudo regrado com boa prosa, a conversa de cabra.