O livro de Renato da Silveira intitulado o Candomblé da Barroquinha - Processo de Constituição do primeiro terreiro baiano de keto - é primoroso. Editado pela Mainga, 650 páginas incluindo a valiosa bibliografia, reúne num único volume uma análise detalhada de como esse processo foi engendrado em terras da cidade do Salvador da Bahia, contextualizando todo enredo do trabalho em momentos históricos da humanidade, desde Santo Agostinho e o Cristianismo Imperial; até a expulsão do candomblé do centro histórico para ocupar a roça da antiga via de acesso ao Rio Vermelho de Baixo.
Não conheço nenhuma obra com tamanha abrangência e enfoque central no candomblé visto que, outros trabalhos publicados na Bahia e no Brasil , ou abordam as doutrinas colonisalistas de uma forma mais ampla, no contexto da história tradicional do Brasil, ou o candomblé é analisado numa ótica em que essa base doutrinária é relegada a um segundo plano, muitas vezes sequer citada; ou num enfoque eminentemente da ancestralidade afro, sem esse viés, sem essa campo de luz para que as pessoas tenham uma maior compreensão de como esse processo se deu.
O trabalho de Silveira tem esse grande mérito, além, óbvio, todo o estudo que foi realizado no plano do candomblé como cultura, como religião, como amálgama de uma sociedade que se formatou na Bahia e é conhecida, ainda hoje, como o povo de santo. Mas, só o fato da obra clarear a mente dos leitores sobre o movimento social medieval, a construção do estado de direito, o colonialismo moderno, o culto aos santos e os primeiros contextos de redifinições das políticas sociais escravistas já vale o saber do livro.
Interessante, também, como Silveira analisa alguns conceitos emitidos por Pierre Verger, Nina Rodrigues, Vivaldo da Costa Lima, Roger Bastide, Nelson Carneiro e outros os contestando ou complementando análises feitas por esses estudiosos, sempre com uma argumentação muito firme e bem documentada. Ao abordar o calundu de Luzia Pita diz que Carneiro chegou a influenciar um pesquisador do quilate de Roger Bastide que escreveu a seguinte bobagem: "As ‘nações' congo ou angola, de fato copiaram amiúde os candomblés dos negros ocidentais, mudando apenas os nomes das divindades (substituindo Oxalá por Zumbi; Exu por Bombogira, etc".
Adiante, ao tratar do enfrentamento das correntes moderada e tirânica: desempenho do Conde da Ponte e do Conde dos Arcos no contexto do candomblé da Barroquinha destaca que, quando "Nina Rodrigues, no final do século XIX, elevou-se contra a repressão policial nos candomblés e defendeu o sincretismo religioso como a maneira mais rápida de integrar os afro-baianos a cultura ocidental "apenas expressava um sentimento mais antigo ou melhor dizendo, veiculava uma ideologia colonialista moderada, informada pelo Cristianismo, já sedimentada entre as classes dominantes luso brasileiras". E faz o contraponto: "Também estava sedimentada uma corrente tirânica do pensamento, partidária de anulação total do escravo, considerado apenas como um animal útil, mera força de trabalho a ser explorada até a exaustão".
Essa é uma questão ainda hoje muito discutida, das formas de sincretismo e suas práticas atuais, porque vigente em muitos terreiros e roças do povo de santo, da mesma forma que uma nova ideologia evangélica, trabalha intensamente no sentido de desintegrar essa unidade afro-baiana em torno do seu culto original que é o candomblé. Se antes era a polícia que os atormentavam, agora são os crentes com seus cultos espalhados em cada logradouro da cidade.
Renato da Silveira teve ainda a coragem de abordar um tema pouco revelado nos livros sobre a cultura afro-baiana, qual seja a participação das lideranças negras dos países africanos vencedores de batalhas entre as nações, entre os povos d'África e que vendiam seus irmãos de sangue como mercadorias aos europeus para que fossem utilizados como animais úteis, para usar uma expressão acima do autor.
A queda do Império de Oyó e novo pacto Nagô-Ioruba estão bem postos no livro, sobretudo no subitem - O Tráfico Negreiro e a Militarização da Sociedade Iorubana. Entende-se que "a guerra tornou-se o principal meio de obter escravo para o mercado atlântico" e foi por motivo dessas guerras tribais e entre nações que algumas personalidades africanas (os vencidos e vendidos) aportaram na Bahia. E, por serem mais sábios, líderes, contribuíram para a organização da sociedade afro-baiana dos primórdios, em meados do século XIX, com bases mais estruturais.
Daí nasceram a Irmandade de São José dos Martírios e surgem Iyá Adetá, Iyá Akalá, Iyá Nassô, Babá Assiká, Bamboxé Obitikó e outros que se constituíam numa espécie de elite pensante do povo de santo que, nos dias atuais, está viva, sofrendo muito ainda, mas mantendo as suas tradições, pulsante, cultuando seus orixás e se distanciando a cada passo do cristianismo, hoje, bentidiano e tradicionalista.
Livro de cabeceira para quem estuda a história da Bahia.