Quero dedicar esse texto a algumas marias que conheci. Marias ninguém, marias alguém, marias vitórias. Marias esquecidas que guerreiam diariamente pela sobrevivência, nas mais recônditas regiões, em suas culturas, limitações e sonhos. Marias que, provavelmente, são apenas números em períodos de recenseamento.
A maria que gostaria de reverenciar é uma senhora de mãos grossas e rachadas pela lida na enxada, face vincada de rugas, olhos marejados de lágrimas numa mistura de inocência e ignorância ao falar de si, ao lembrar-se do passado difícil e de fome, dos chás improvisados para alimentar os 13 filhos. D. Maria Guimarães não sabe sua idade.
Como outras mulheres, ela vive na pequena comunidade do Raso, sem luz, sob o sol intenso e água escassa - a vegetação de caatinga mais causticante que já pus os olhos - na região de Canudos. D. Maria lembra que seu marido já ouvira falar de Antonio Conselheiro (referindo-se ao beato que criou uma sociedade alternativa em Canudos no final do século XIX) e também da inundação que sepultou a cidade de Conselheiro, nos anos 70. Simples também são seus sonhos: continuar vivendo ali - naquele lugarejo perdido no tempo - criar cabras e ver seus netos e bisnetos estudarem sem passar pelas privações da qual fora vítima.
Tive uma manhã, contudo, dias seriam necessários para me aproximar da realidade de D. Maria e suas companheiras, compreender gestos, um linguajar particular, e suas singelas linhas de raciocínio. Pensar em mulher é lembrar D. Maria, numa alegria juvenil, cantarolando canções desconhecidas dos ouvidos comuns e urbanos, enquanto capinava a terra seca do sertão. Letras ingênuas que falam de trabalho, de amor e de laranjeiras.
É também recordar a receptividade de Maria Conceição Varjão, também do Raso. Cabelos esvoaçados, expressão sofrida, pele queimada, faltando-lhe os dentes superiores, que, mesmo doente, batia feijão para alimentar os dois filhos. Chamou-me, várias vezes, de menina, sem saber que fosse eu apenas um ano mais jovem que ela. São essas mulheres que merecem ser lembradas com carinho. São marias ninguém, frente a toda urbanidade que nos devora, mas, sobretudo, são vitoriosas marias.
Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, já se tornou comum remeter-se às importantes conquistas das mulheres. Ou, ao contrário, às atrocidades a que são expostas. Algumas desafiam os preconceitos profissionais, intelectuais e se destacam em cargos importantes. Enfrentam duplas ou triplas jornadas ao aliar suas atividades profissionais aos cuidados com a família.
Com menos oportunidades, outras são agredidas por seus parceiros, humilhadas e subjugadas, justo por não ter conquistado independência financeira, o trabalho fora de casa, e a possibilidade de prover suas famílias sem a ajuda dos carrascos. Conheci uma Maria que vivia numa redoma de medo, luxações e chantagens psicológicas e não morava na periferia, como normalmente pode-se imaginar. Não prestou queixa por ameaça de morte, mas venceu o seu algoz depois de estudos e luta. Tornou-se uma maria vitória, mesmo em silêncio.
A todas as marias vitoriosas, guerreiras, benzedeiras, médicas, vencedoras, momentaneamente perdedoras, mas que fazem da caneta, da enxada ou da lágrima símbolo de sua luta, minhas sinceras reverências.