CINEMA
Em 1969, um grupo de jovens dedica-se ao ópio após ter vivido os acontecimentos de 1968. Um romance intenso nasce dentro deste grupo, entre dois jovens de 20 anos que se conheceram durante a revolta. Assim é "Amantes constantes" (Les amants réguliers, 2005, França), filme de Philippe Garrel vencedor dos Prêmios de Direção e Fotografia no Festival de Veneza de 2005. O filme retoma características da Nouvelle Vague (movimento cinematográfico francês difundido no mundo todo por Truffaut e Godard), como a presença de diálogos longos e, consequentemente, ritmo narrativo mais lento. Além disso, marca a primeira exibição oficial, no Brasil, de uma obra de Garrel, apesar de sua longa lista de produções no decorrer dos seus muitos anos de experiência.
"Amantes constantes" conta a história de um grupo de jovens engajado nas lutas sociais de 1968, que mistura ideais românticos de revolução social e de manifestação artística. Há quem diga que o filme foi a forma encontrada por Garrel para reviver um momento histórico do qual ele foi participante e que marcou intensamente a vida da juventude da época. Portanto, não admira que o protagonista da história, o poeta François, seja representado por seu filho, Louis Garrel ("Os sonhadores") e que o próprio Philippe atue, em determinado momento, numa cena de família em que ele, a mulher e o filho, representando juntos, confundem o telespectador a ponto de se indagar se são os personagens que falam ou se é o próprio diretor quem insere, na história, fragmentos de vida real.
Philippe Garrel prefere trabalhar um tema um tanto desgastado como a revolução de 68 a partir do resgate de suas memórias, por isso o filme parece muito mais apaixonado e pessoal do que uma obra prioritariamente comercial, e, por conseguinte, mais facilmente aceita pelo grande público. A escolha do formato preto e branco aponta para um exercício estilístico baseado em lembranças e merecidamente deu ao diretor o prêmio de Melhor Fotografia no Festival de Veneza de 2005.
O filme retrata dois ideais do maio de 68: o desejo de transformação, a busca pela liberdade e a apatia pós-conflitos de rua aliados à vontade de transformar a expressão artística em modo de vida, mesmo que isso se faça de forma incerta, meio insegura, mas persistente em seu objetivo. As incoerências das atitudes, os desencontros e descaminhos das personagens dão ao filme de Garrel uma aproximação ao motivo literário da busca, mesmo que por caminhos nem sempre termináveis ou compreensíveis. O amor aí é o meio de conciliação entre esses ideais que se mesclam e ao mesmo tempo divergem entre si.
O prêmio de melhor diretor, também do Festival de Veneza de 2005, pode ser entendido como uma estratégia revolucionária, na medida em que legitima uma produção européia que vai na contra-mão das fórmulas fáceis (e bem executadas) do império cinematográfico norte-americano. A sensibilidade e inteligência de Garrel reencena e coloca em divulgação a atmosfera e o tema da luta por liberdades, quase 40 anos depois dos acontecimentos narrados. A paixão e a rebeldia que marcaram os jovens nos 60, e especialmente na primavera de 68, talvez estejam diluídas nos dias de hoje. Assim como o clima que se estabelece com o grupo de amigos de "Amantes constantes", após sua participação, nos dias que passam sem fazer nada, acompanhados por ópios e álcool, sustentados pela fortuna de um dos amigos. Fora do sistema capitalista, fazendo do ócio uma prática de resistência, formando por alguns momentos uma comunidade alternativa que não alimenta as coerções da sociedade.
Enquanto isso, o casal protagonista vive uma história de amor descrita em preto e branco, com diálogos longos e pausas impensadas para um casal de Hollywood. Enquanto a França vive um episódio que vai repercutir no mundo ocidental, os amantes vivem sua relação na cadência permitida pelos afetos. O diretor não está comprometido com o tempo estabelecido pela forma do cinema de entretenimento. O tempo dos amantes é respeitado e pode provocar no tempo do espectador uma vontade incontrolável de sair da sala. A canção "Samba e amor", de Chico Buarque, gravada em 1969, amplia a rede de amantes que fazem sua revolução protegido por braços amorosos: "Eu faço samba e amor até mais tarde/e tenho muito sono de manhã/escuto a correria da cidade, que arde/e apressa o dia de amanhã/(...) No colo da bem-vinda companheira/no corpo do bendito violão/eu faço samba e amor a noite inteira/não tenho a quem prestar satisfação". Estes versos, liricamente alinhados aos ideais de 68, traduzem impecavelmente o amor que os amantes do filme de Philipe Garrel vivem enquanto a luta prossegue.
A ressaca dos dias seguintes aos acontecimentos de 68 em Paris talvez possa ser estendida como metáfora para o enfraquecimento dos ideais utópicos da nossa época. Outros jovens, outras mídias e outros modelos de ópio. O que talvez se mantenha constante seja exatamente a solidão humana e a ilusão, esta sim ainda utópica, de que o amor possa acalmar nossos anseios por uma vida menos ordinária