O RESPEITO À VIDA HUMANA

CÍNTIA MELO
26/02/2007 às 10:35



 

Dois crimes, e apenas exemplos dos golpes que minam a sociedade brasileira. O funcionário público municipal Neylton Souto saiu para trabalhar no sábado, 6 de janeiro, às 8h. No mês seguinte, dia 7, o menino carioca João Hélio, seis anos, não conseguiu se desvencilhar do cinto de segurança, durante um assalto. Neylton foi espancado no escritório da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), de Salvador. João Hélio causou comoção nacional ao ser arrastado pelo cinto do veículo, por sete quilômetros. De acordo com o Instituto Médico Legal, Neylton sofreu cerca de uma hora de espancamento até falecer e ser jogado do 3º andar da SMS. João Hélio teve o corpo dilacerado. 


O que esses crimes têm em comum? Refletindo além das aparências há pontos que se interceptam fatalmente. Ambos vêm de pilares corroídos da sociedade brasileira. Um deles é a violência urbana que acometeu o menino João Hélio. A segunda coluna deteriorada ligada a Neylton provavelmente conduza a questões de corrupção, embora ainda nada tenha sido concluído pelas investigações da Secretaria de Segurança Pública. Neylton trabalhava com planilhas de repasses de verbas do Sistema Único de Saúde (SUS). Suspeita-se de queima de arquivo, talvez Neylton soubesse demais para alguns.


A questão principal que une os crimes é a falta de ética. Corrupção e violência são resultantes de uma mesma praga: a falta de respeito à vida humana, ao direito social e ao bem público. Um dos conceitos sobre ética no dicionário Houaiss diz que se trata de um "conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade." Observando por este prisma, percebe-se que muita coisa na sociedade brasileira corre fora dos trilhos.


Não se pode generalizar, mas entre os poderosos e os excluídos (os que margeiam os meios de consumo-trabalho-educação-formação) parece haver um egocentrismo que se dissipa como vírus: eu, meus interesses em primeiro lugar, ou do meu grupo. Esse lema impera sobre as responsabilidades, o senso de justiça e compromissos, o respeito à família ou ao próximo, que norteiam o modo de vida nas comunidades ou instituições e suas relações de poder.


Uma parte contaminada vive de uma ética às avessas, onde a sobrevivência das vontades pessoais ou de um pequeno grupo prevalece sobre qualquer regra, leis e costumes. O pacto não é mais com a sociedade, nem com o cidadão, mas com si mesmo. Perderam-se os princípios. Quantos joão hélios e neylton são trucidados e não se tornam notícias? O respeito à vida humana parece estar em baixa nos dias atuais.


O dueto criminalidade e corrupção não se encerra como fonte que implode aos poucos o país. Trata-se apenas de fios de um emaranhado muito maior que conduz a questões tais como: a globalização; a juventude cada vez mais ensimesmada (com exceções, um radical inverso da juventude dos anos 60); grande parcela da população excluída dos meios de produção e, ao mesmo tempo, exposta a estética consumista martelada diariamente pela mídia; a insurgência de poderes paralelos ao estado, e, sobretudo, ausência de valores do bem.


É uma teia profunda e dolorosa percebida pelo filósofo australiano Peter Singer ao comentar o crime de João Hélio à Revista Veja (pg. 11, 21/02/07). "Quando pessoas supostamente normais cometem barbáries, tem-se um péssimo sinal. É uma prova de que a sociedade perdeu o controle de si mesma, que as pessoas não têm mais noção exata de certo e errado".


Por outro lado, tem-se a impressão que a corrupção virou mania nacional, inoculada nas tramas públicas independente de partidos políticos ou gestores. Nesses entremeios, perdeu-se também a noção do certo e errado. Há de alguém responder se é o homem que corrompe o poder, ou o poder que corrompe o homem. Essa talvez seja outra longa discussão. Mas não dá mais é para passar vista grossa nas situações que surgem. São necessárias atitudes realistas e otimistas de todos os que ainda estão a salvo do tal vírus do egoísmo antiético.