O Programa Grandes Mamíferos da Serra do Mar – apoiado pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza e WWF-Brasil – está monitorando uma população de ao menos 11 onças-pintadas (Panthera onca) na região da Serra do Mar no Paraná, sendo possível identificar seis machos, três fêmeas e um filhote. O monitoramento regular e em larga escala já gerou muitos vídeos, permitindo aos pesquisadores acompanhar a trajetória e os hábitos desses felinos na Mata Atlântica do litoral paranaense.
Segundo Roberto Fusco, coordenador técnico do Programa e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), a presença de fêmeas e machos próximos indica que o uso dessa área pelas onças não é ocasional, mas que elas estão utilizando-na como parte de seus territórios para patrulhamento e reprodução. “O registro anual dos mesmos indivíduos, nas mesmas áreas, revela que eles não estão apenas passando pelo local, mas ocupando essa região. Com isso, podemos classificar que é uma população de onças com potencial reprodutivo. Ainda é muito cedo para afirmarmos sobre a tendência da população. A expectativa mais otimista é de que ela cresça em um futuro próximo, desde que a pressão de caça por perseguição e retaliação sobre a onça e suas presas sejam reduzidas”, explica o especialista.
O primeiro registro, em 2018, mostrou um casal em comportamento de acasalamento. Até 2022, o monitoramento já havia apontado a presença de 11 indivíduos. Os registros foram obtidos por 93 estações com armadilhas fotográficas, que é uma das metodologias utilizadas na pesquisa em campo e possibilitam análise científica das imagens. Os vídeos permitem acompanhar alguns comportamentos das onças-pintadas na natureza, como o de comunicação entre os indivíduos com o esturro (som que essa espécie faz para se comunicar), de relaxamento (deitar e rolar na grama), de marcação de território e até mesmo de maternidade, com mãe e filhote.
Para chegar a esse resultado, pesquisadores do Programa Grandes Mamíferos da Serra do Mar buscaram a ocorrência da onça-pintada no estado do Paraná em 6.500 quilômetros quadrados de floresta, usando três métodos científicos: as armadilhas fotográficas (câmeras escondidas que registram imagens da movimentação de animais na floresta), pegadas e entrevista com moradores de comunidades rurais, que apontam áreas com potencial de presença do animal.
O pesquisador, entretanto, destaca um ponto de alerta identificado pelo monitoramento: “Embora essa população seja essencial para a conservação da espécie na região, ela é considerada pequena em comparação ao tamanho desse contínuo de floresta. Há locais na Serra do Mar do Paraná onde o animal não foi registrado, nem há sinais de sua presença.”
Fusco acrescenta que o monitoramento em larga escala permite entender os padrões, o processo de expansão e retração da população de onças ao longo do tempo, além de identificar potenciais ameaças, como caça e conflitos de humanos com os felinos, fatores que podem levar à morte desses animais por retaliação. “Esses dados são cruciais para a identificação de corredores e áreas de população que requerem proteção, para a mitigação de conflitos e planejamento de conservação, especialmente com ações urgentes para reduzir a caça de onças e suas presas (como porcos-do-mato, veados, pacas, tatus etc.), de forma que garanta a persistência e a expansão populacional da onça-pintada ao longo da Mata Atlântica costeira”, aponta.
Integração de esforços de conservação
O segundo alerta revelado pelo monitoramento mostra a movimentação de um macho de onça-pintada de São Paulo para o Paraná. Os pesquisadores conseguem identificar os animais a partir da composição das suas rosetas - as pintas das onças -, que são únicas, como as nossas impressões digitais. Em 2021, o animal foi identificado no Parque Estadual do Rio Turvo em São Paulo, e em 2022, no Parque Estadual das Lauráceas, no Paraná, uma distância de 45 quilômetros em linha reta entre os dois pontos. Esse registro, segundo o pesquisador, reforça a importância da integração dos esforços de conservação entre os dois estados.
“O bicho não conhece fronteiras. Portanto, é essencial a união de esforços entre os estados do Paraná e de São Paulo para o monitoramento, proteção e conservação da espécie, em grande escala, na região que integra o território da Grande Reserva Mata Atlântica, o maior remanescente contínuo desse bioma no Brasil”, explica Fusco.
Como solução, o pesquisador apresenta uma estratégia inédita na Serra do Mar aplicada pelo programa, que é a Rede de Monitoramento. “É uma iniciativa multi-institucional e colaborativa, que nos permite realizar o maior monitoramento em larga escala na Mata Atlântica. Atualmente, a Rede conta com mais de 20 membros ativos, entre instituições públicas, privadas e gestores de Unidades de Conservação, no Paraná e em São Paulo. Dessa forma, conseguimos propor que os membros olhem para além da sua área, que atuem em conjunto, somando esforços e realizando ações mais efetivas que consideram todo o contexto dessas regiões. No entanto, é essencial que todos os demais atores da conservação também trabalhem em conjunto”, avalia o coordenador.
Para Marion Silva, gerente de Ciência e Conservação da Fundação Grupo Boticário, a presença da onça-pintada na Serra do Mar paranaense reforça a importância da conservação da vida selvagem não apenas nesse local, mas em toda a região da Grande Reserva Mata Atlântica, uma das áreas mais importantes em biodiversidade do mundo. “A Grande Reserva integra 60 municípios de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. E esse rico território, com seus 2,7 milhões de hectares de floresta, é muito valioso para a fauna, a flora e as pessoas. Esse monitoramento e seus significativos resultados demonstram a relevância de investir cada vez mais em iniciativas que impactem positivamente a região, por meio da conservação da natureza.”
Iniciativas de proteção
Em 2022, o Programa Grandes Mamíferos da Serra do Mar divulgou um estudo na revista científica Oryx, publicada pela universidade britânica de Cambridge, apontando que a presença dessa população amplia em 9% a área de ocupação da onça-pintada na Mata Atlântica e 46,9% na Serra do Mar, tornando a região a maior área prioritária para a conservação da onça-pintada nesse bioma no país.
A atuação do Programa na localidade integra a Estratégia de Conservação da Onça-Pintada 2020-2030, um programa da Rede WWF em parceria com outras organizações, que contempla 15 áreas prioritárias, em 14 dos 18 países onde o felino ainda vive.
“Essa estratégia é um plano transfronteiriço, com o objetivo de garantir a conservação e recuperação da onça-pintada, especialmente em áreas prioritárias. O monitoramento dessa população é um enorme passo nesse sentido, tendo muito impacto nas ações locais e globais de conservação. Ao proteger uma espécie topo de cadeia, como a onça-pintada, todo o entorno é beneficiado. Agora, esses dados devem ser utilizados estrategicamente para avançar na proteção desses territórios na região e no Brasil. A onça-pintada pode se tornar um símbolo de desenvolvimento sustentável na América Latina, e os esforços dirigidos para a sua conservação podem ajudar os países a cumprirem suas metas nesse tema”, diz Felipe Feliciani, analista de Conservação do WWF-Brasil.
Assim como outras espécies de grandes mamíferos, esses animais são os que mais sofrem, direta ou indiretamente, com a fragmentação das florestas e a pressão de caça, porque dependem de áreas extensas e saudáveis para sobreviver. Na Mata Atlântica, uma das florestas tropicais mais ameaçadas do planeta, a onça-pintada já perdeu 85% de seu habitat, e sua população é estimada em cerca de 300 indivíduos distribuídos em pequenas e restritas subpopulações, inclusive em florestas maiores. Além do Paraná, o Programa também monitora indivíduos na Serra do Mar no Estado de São Paulo.