Senhora da Boa Morte
Cachoeira em festa. Os tradicionais festejos da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. O que é essa irmandade?
Tasso Franco , da redação em Salvador |
09/08/2013 às 14:43
Cachoeira em Festa com as negras da Nossa Senhora da Boa Morte
Foto: A Tarde
"A Irmandade da Boa Morte está acima das ideologias, idiossincrasias, raças, língua e poderio econômico’ (De um documento da Irmandade, de julho de 1990)
A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte é uma confraria religiosa exclusivamente feminina ligada à Igreja Católica. Seus membros são senhoras negras, descendentes de ex-escravos e também vinculadas aos tradicionais terreiros de culto jeje-nagô de Cachoeira, cidade-presépio, histórica, que fica na beira do Rio Paraguaçu, o maior porto de exportação de fumo e cana-de-açúcar desde os primevos coloniais até a metade do século XX, recôncavo baiano. A irmandade foi fundada em Salvador por negras libertas, na antiga igreja da Barroquinha, onde, aos fundos, a poucos metros, esteve assentado o Iyá Omi Axé Airá Intilé – terreiro dedicado a Xangô e matriz dos candomblés nagôs baianos.
A ‘boa morte’ é uma referência à crença católica, muito antiga, introduzida pelos portugueses no Brasil-Colônia, de que Maria, a mãe de Jesus, não morreu, apenas dormiu e seu corpo foi elevado por anjos ao céu. É a chamada Assunção de Nossa Senhora, celebrada no dia 15 de agosto pelos católicos e dia da festa maior da Irmandade de Cachoeira. Para as negras nagôs baianas o culto à chamada ‘boa morte’ ou ‘dormição de Maria’ não significou a negação da tradição e da fé nos Orixás ou Voduns africanos. Os rituais em Cachoeira, que começam no início de agosto, misturam orações, missas, procissões solenes, rezas de terço e ladainhas com comilanças, danças, rodas de samba nas ruas e também cerimônias secretas nas madrugadas dos terreiros com o culto a Nanã Buruku e Dã - a serpente, o arco-íris – Voduns dos jejes.
A Irmandade sobrevive, com dificuldades, de doações arrecadadas pelas iniciadas entre a comunidade, de algum auxílio dos poderes públicos (que se beneficiam com o turismo étnico) e a ajuda de algumas organizações internacionais, como universidades que estudam, pesquisam essa tradição popular.
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O escritor Jorge Amado, um ateu filho de Oxóssi, que morreu no dia 6 de agosto de 2001, era uma espécie de protetor da Irmandade. Certa feita, o prédio da Irmandade em Cachoeira totalmente abandonado, Jorge tomou nas mãos a ‘cuia de esmoler’ e saiu a pedir ajuda, em defesa de suas queridas ‘velhas negras de Cachoeira’.
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O texto que segue, ‘Cuia de Esmoler’, é de autoria de Jorge Amado, aos 81 anos. Uma ‘carta aberta’ dirigida ao presidente da República, ao ministro da Cultura, ao governador da Bahia, políticos, secretários, empresários , amigos, todos. Seu pedido foi amplamente divulgado, à época, e atendido. Foi destaque, na íntegra, na edição de 27 de janeiro de 1995 do jornal ‘Folha de São Paulo’, caderno 1º, página 3, coluna ‘Opinião’. Reproduzimos abaixo apenas os tópicos principais.
CUIA DE ESMOLER
Tomo da cuia de esmoler das mãos de Celina - Celina Maria Salla -, a infatigável, a heróica combatente. De cuia em punho, irei em frente, pedinte obstinado: a sede nova da Irmandade deve ficar pronta a 14 de agosto, dia em que a festa terá início, a procissão deste ano de 1995 deverá sair das casas reconstruídas. Para que assim seja recebo a cuia de esmoler, parto em missão.
Estamos reunidos em torno à mesa da sala pequena e pobre, sede atual da irmandade, situada ao lado da Igreja da Ajuda. As irmãzinhas me contam as alegrias das doações - a casa maior, oferecida pelo americano rico, a menor, doada por um ex-prefeito de Cachoeira -, relatam as peripécias da luta para obter a reconstrução das duas prendas, fachadas belas, ambas em ruínas. Assumo o compromisso, a cuia de esmoler, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte terá sua sede digna e espaçosa onde as meninas de 90 anos poderão rezar, dançar e cantar.
A conversa chegou ao fim, pusemo-nos todos de pé, as velhinhas cantaram para a Virgem Maria: Vestida de branco ela apareceu, trazendo no cinto as cores do céu, Ave, Ave, Ave Maria. Cantaram para a Virgem Maria, depois dançaram para Xangô: a cultura brasileira.
{...} São mulheres negras, velhas - Arlinda Anatária do Nascimento tem 104 anos de idade -, paupérrimas, reunidas na cidade de Cachoeira há cerca de 200 anos: Libânia, avó de Canô Veloso, bisavó dos Doces Bárbaros, foi das primeiras a ingressar na confraria. Fundada pelos escravos, a devoção da Virgem da Boa Morte nasceu (em 1820, segundo Odorico Tavares) nas mesmas senzalas do recôncavo baiano onde nasceu a capoeira de Angola, onde nasceram as casas de santo, os candomblés da provedora Anália de Iansã, da tesoureira Deleci de Ogum, de Estelita de Oxalá, a juíza perpétua. Gente boa, vivida e sofrida, gente alegre e festeira, credoras de nosso respeito e de nosso amor. Velhas senhoras, trabalham dia e noite, ganham vinténs contados: elas são o alicerce africano da cultura brasileira, de nossa nação mestiça, quem sabe a pedra fundamental – elas são a causa: as criações literárias e artísticas, livros, telas de cinema, palcos de teatro, vídeos de televisão, as altas criações são a conseqüência. É preciso fazer alguma coisa por essas meninas... dar à Irmandade sede condigna.
[...] A festa de agosto, grandiosa, requer sede à altura dos ritos e das obrigações. A missa com que a cerimônia se inicia é celebrada na igreja, tudo bem. Mas a sentinela, o velório da Virgem Maria como limitá-lo ao reduzido de uma saleta¿ Nela não cabem a contrição numerosa das irmãs, os cânticos de louvação, a mesa farta, fartíssima, de comidas baianas de preceito e de quizila, a culinária ritual dos encantados. E se a procissão do enterro tem o chão das ruas de Cachoeira, a festa da ressurreição, a festa maior, a da alegria desatada, a do júbilo, a de Nossa Senhora da Glória, feita de cantiga e de samba, - samba de roda, cantos gêges e nagôs - exige uma sede onde se possa de fato e de direito celebrar a vitória da vida sobre a morte.
É preciso recuperar as casas erguer a sede. Passarei a cuia de ilustre a ilustre, de poderoso a poderoso, de rico a rico. Não terei vergonha de solicitar o óbolo, a esmola - a esmola, aí! - até termos juntado a quantia necessária, tão pequena para os que podem e devem, tão imensa para as velhinhas da irmandade. Desavergonhado, pedirei aos que são meus amigos e àqueles que mal conheço [...] Quem se atreveria a negar à Senhora da Boa Morte¿
Depois dos ricos, irei aos poderosos [...] Cachoeira necessita e merece tanto quanto o Pelourinho. A recuperação das casas da Irmandade da Boa Morte pode significar o início da restauração da magnificência da cidade. [...] Já apelei ao ministro da Cultura, apelarei ao presidente da república: a meu ver sua ajuda à Irmandade da Boa Morte está explícita nos compromissos de seu discurso de posse. Além do mais – recorda-se Fernando Henrique ¿ - na visita à Igreja do Bonfim, a provedora Anália colocou no pescoço do candidato o colar de Xangô, decisivo para a vitória.
Contaram-me que já existe um projeto de restauração das casas doadas, realizado por Paulo Ormindo, filho ilustre do ilustre Thales de Azevedo. É chegado o tempo de retomá-lo e realizá-lo. Em nome também de Paulo Ormindo e de Thales de Azevedo estendo nossa cuia de esmoler. Em nome deles e de mestre Carybé - ao citá-lo, cito todos os artistas da Bahia; de Myriam Fraga - ao citá-la cito todos os poetas da Bahia, os grandes, os pequenos e os de cordel; de Dorival Caymmi - ao citá-lo, cito todos os músicos da Bahia; de Jorge Calmon - ao citá-lo cito todos os jornalistas da Bahia; de Eduardo Portela – ao citá-lo cito todos os ensaístas da Bahia; de João Ubaldo Ribeiro - ao citá-lo cito todos os ficcionistas da Bahia; de Maria Bethânia - ao citá-la cito todas as deusas da Bahia; em nome de todos os que amam a beleza, a graça e a civilização brasileira, estendo nossa cuia de esmoler, peço ajuda com urgência. Não peço, exijo. Exijo ajuda e urgência na ajuda.
A inauguração de nova sede tem data marcada: 14 de agosto de 1995, dia do início dos festejos da Nossa Senhora da Boa Morte. Adenor Godim fará a fotografia das irmãs e dos benfeitores reunidos em frente às casas restauradas. Na sala ampla da nova sede, museu de alfaias e paramentos, de imagens, do acervo precioso da Irmandade, as meninas - velhinhas de 90 anos, pobres de marre de si, festeiras sem igual - cantarão para a Virgem: vestida de branco, cercada de luz, no céu aparece a Mãe de Jesus, Ave, Ave, Ave Maria. Depois, a provedora Anália rodará a saia, sairá porta afora, as demais a acompanharão, dançarão para Xangô.
Cantarão para Nossa Senhora, que aqui chegou com Jesus nas caravelas lusitanas, dançarão para os orixás, que vieram na viagem de espanto nos navios negreiros: aqui se misturaram. A Virgem Maria, Iemanjá e Mani, a raiz sagrada dos indígenas, se misturaram e a cada dia se misturam mais – a cultura brasileira, meus ilustres !
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Crédito: Material recolhido do livro “Carybé, Verger & Jorge – Obás da Bahia”, 3º volume da trilogia selo ‘Entre Amigos’ , da Solisluna Editora & Fundação Pierre Verger’, lançado em 2012. (Com redação e edição de texto de José de Jesus Barreto; concepção, edição e design de Enéas Guerra e Valéria Pergentino)