Ao longo dos seus 42 Carnavais, o bloco Ilê Aiyê já apresentou inúmeros temas e fez de cada um deles uma maneira nova de traduzir, nas ruas do Carnaval de Salvador, a sua luta contra a segregação racial e pelo fortalecimento da identidade étnica do negro. Em 2016, depois de “passear” por diversos países e estados brasileiros que compõem a diáspora africana, é para o Recôncavo Baiano que o bloco afro mais antigo do Brasil decide lançar seu olhar. Rica em manifestações culturais, berço de importantes personalidades negras e com grande participação nas lutas pela Independência da Bahia, a região é o tema do Carnaval 2016 do Ilê Aiyê.
Congo, Nigéria, Senegal, Palmares, Costa do Marfim, Guiné Equatorial, Mali, Zimbabwe, Jamaica, assim como Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul foram lugares vasculhados ao longo dos tantos Carnavais do Ilê Aiyê. Escolhidos como tema de pesquisa, viraram apostilas de estudo, inspiraram os desfiles e passaram a integrar a história de resistência da entidade carnavalesca, sempre preocupada em trazer à tona a história de países e estados que compõem a diáspora negra.
“É até tardia a escolha do Recôncavo Baiano como tema. Já chegamos a mostrar estados brasileiros considerados brancos onde descobrimos manifestações culturais, terreiros de candomblé, tudo para mostrar a presença negra forte, contribuindo para a construção da civilização brasileira. Agora chegou a hora de reconhecer esse legado africano, que é o Recôncavo, que significa, na verdade, olhar para nós mesmos. Assim voltamos ao nosso local de origem, onde tudo começou, para contar a nossa história, e assim o Ilê Aiyê chega a sua maturidade e enxerga a si mesmo”, comenta Arany Santana, membro da diretoria do Ilê Aiyê.
A região do Recôncavo, que sustentou a capital baiana na época do Brasil Colônia, será representada pelos municípios de Cabeceiras do Paraguaçu, Cachoeira, Castro Alves, Conceição do Almeida, Cruz das Almas, Dom Macêdo Costa, Governador Mangabeira, Maragojipe, Muniz Ferreira, Muritiba, Nazaré, Santo Amaro, Santo Antônio de Jesus, São Felix, São Felipe, São Francisco do Conde, São Sebastião do Passé, Sapeaçu, Saubara e Varzedo.
Um dos primeiros pedaços de terra pisados pelos portugueses, o Recôncavo teve um papel relevante na produção agrícola do estado da Bahia até o início do século XX. Por lá se instituiu um significativo comércio de açúcar, de fumo e de outros produtos oriundos de diversas localidades, que foram levados a Portugal e a outros países da Europa. O embarque dos produtos e o desembarque dos escravos foram facilitados devido à proximidade do Recôncavo com Salvador, primeira capital do país. Durante esse processo, os colonizadores portugueses dizimaram aldeias tupinambás, e o Recôncavo se estabeleceu como um dos principais destinos da diáspora africana.
Caldeirão Cultural - A ampla mistura de povos deixou marcas na cultura, na culinária e na paisagem natural e artificial daquela região, que hoje abriga uma população formada por 80% de negros, segundo o último senso étnico racial divulgado pelo IBGE. Como resultado, suas cidades são marcadas por manifestações da cultura negra e por um poderoso sincretismo religioso, no qual a cultura dos negros influencia a dos brancos.
O Recôncavo histórico, cultural, econômico, petrolífero, político e social é o Recôncavo que o Ilê Aiyê irá homenagear. Um olhar especial será dirigido para as manifestações culturais, como a festa da Irmandade da Boa Morte e a Festa da Ostra, em Cachoeira; o Carnaval dos Mascarados e a Festa de São Bartolomeu, em Maragogipe.
O Recôncavo também é o berço do cortejo Lindroamor em São Francisco Conde; Nego Fugido, Samba de Nicinha e Maculelê, em Santo Amaro; Festa dos Reis em Cabaceira do Paraguaçu e as Caretas de Saubara. A região também é do Maculelê, da Marujada, da arte barroca e do tradicional Samba de Roda e da Capoeira, considerados Patrimônio Cultural e Imaterial da Humanidade.
O conjunto de cidades localizadas no entorno da Baía de Todos os Santos também ganham relevância quando o assunto é sua contribuição para a formação do candomblé como uma instituição religiosa. Isso graças à atuação dos terreiros de candomblé presentes em diversas cidades. Contribuição esta que teve reconhecimento ano passado, quando dez terreiros de Candomblé, localizados nas cidades de Cachoeira e de São Felix, passaram a ser protegidos via tombamento. Os terreiros foram os primeiros do país a receber o Registro Especial de Patrimônio Cultural Imaterial, que inclui também as manifestações populares, os conhecimentos e as heranças simbólicas das suas matrizes culturais.
Personalidades Negras – Em meio a inúmeros personagens importantes que fizeram e fazem parte da expressiva história do Recôncavo Baiano, o desafio é selecionar poucos nomes. Entre eles, sem dúvida, está Dona Dalva Damiana. Aos 86 anos, ela segue firme com o propósito de passar adiante a identidade da cultura local. À frente do elegante Samba de Roda Suerdieck, a charuteira da cidade de Cachoeira carrega com simplicidade o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) desde 2012.
Das principais responsáveis pela internacionalização do Samba de Roda da Bahia, outra personagem de destaque, representativa da cidade de Santo Amaro, é a talentosa sambadeira Maria Eunice Martins Luz, mais conhecida como Nicinha do Samba, do Samba de Nicinha. De Santo Amaro, também aparece forte a família Veloso, que teve um papel fundamental para manutenção e divulgação das manifestações culturais baianas.
Mãe do compositor e cantor Caetano Veloso e da cantora Maria Bethânia, dona Canô - que faleceu aos 105 anos em 2012 - foi a principal interlocutora da comunidade do ponto de vista religioso, político e cultural. Ainda naquela cidade, são destaques o cantor e compositor Roberto Mendes, o artista, colecionador e curador Emanuel Araújo, além do escritor, geógrafo e historiador Teodoro Sampaio.
A homenagem a figuras representativas da raça negra fortalece o diálogo do tema do Carnaval 2016 do Ilê Aiyê com a Década Internacional do Afrodescendente, instituída pela Unesco, que teve início em 1º de janeiro de 2015 com o objetivo de reconhecer a contribuição significativa feita pelos afrodescendentes às nossas sociedades, bem como propor medidas concretas para promover sua inclusão total e combater todas as formas de racismo, discriminação racial e xenofobia.
Nesse contexto, ainda é importante citar personalidades do Recôncavo como uma das mais importantes yalorixás do candomblé jeje da Bahia, Luiza Gaiakú; o engenheiro e abolicionista André Rebouças, assim como Manuel Faustino, um dos líderes da Revolta dos Alfaiates, também conhecida como Revolta dos Búzios pelo fato de todos revoltosos usarem um búzio preso a uma pulseira como código de identificação entre si.
Uma vez o Recôncavo Baiano tendo sido escolhido para o tema do Carnaval 2016, o assunto passa a ser alvo de pesquisa para produção de apostilas de estudo, que deverão inspirar, por exemplo, a criação das novas canções do bloco afro, uma vez que o Festival de Música Negra do Ilê Aiyê, realizado todo mês de dezembro, escolhe três composições dentro da categoria “tema” para integrar o repertório do grupo. O assunto também vai fazer parte de atividades educativas na Escola de Mãe Hilda, além de ser estampado na fantasia momesca do bloco e estar entre as homenagens da Noite da Beleza Negra.
A escolha também deve gerar uma aproximação do Ilê Aiyê com as prefeituras das cidades do Recôncavo, que serão convidadas a participar do lançamento oficial do tema na Senzala do Barro Preto, com data a confirmar.