Quando o cientista Darwin passou aqui, no carnaval de 1932, registrou em seu diário a cena de um grupo de negros, caras caiadas, macaqueando os brancos, no Pelô. À época, a brincadeira comum era o corso, o mela-mela. Coisa de branco. O etnógrafo Waldeloir Rego constatou luxuosos desfiles de clubes carnavalescos ainda no século XIX, heranças portuguesas.
Já no séc XX, ver a passagem desses préstitos era programa de família, todos sentados em cadeiras sobre as calçadas ao longo da avenida. Os jornais destacavam com fotos. No pé da página, a nota : ‘... enquanto isso, os pretos saracoteavam na Baixa dos Sapateiros'.
Folia de branco tinha baile a fantasia com orquestra nos clubes sociais, onde preto não entrava. Os afrodescendentes faziam fuzarca nos bairros, com caretas, batucadas, cordões de percussão e afoxés vinculados a terreiros. Macaqueávamos escolas de samba do Rio, a capital do país.
O primeiro fato que criou uma identidade diferenciada do nosso carnaval foi a sacada do trio elétrico, em 1950, pelos amigos Dodô e Osmar (e Themístocles) que eletrizaram e amplificaram o som de primitivas guitarras e, trepados numa fubica, desceram a rua Chile e avenida arrastando uma multidão inimaginável.
Preto e branco, grandes e pequenos sem distinção na trilha do prazer da alegria. Mistura humana enriquecedora. Nos 1950 descobrimos a baianidade. Anos da ascensão de uma classe média assalariada petroleira, da expansão da Universidade, da valorização da cultura negra através das artes, da aproximação Rio-Bahia, do crescimento do comércio, de marcantes obras públicas, de mudanças.
Com dinheiro no bolso, negros e mulatos abriram espaços. Se, até então, só entravam no Bahiano pela porta da cozinha, criaram seus clubes, como o Comercial, o Palmeiras da Barra, o Periperi... E o trio elétrico - adiante capitaneado por Orlando Tapajós, que agregou patrocínios para alavancar a invenção - democratizou a folia. A batucada dos mestiços saiu dos guetos, surgiram os blocos de índios - Apaches, Comanches...- inspirados nos filmes americanos, mas com ritmo de senzala. A brancalha teve medo dos tacapes da mulataria que tomava as ruas.
Outra definitiva transformação aconteceu na década de 1970, sob o eco libertário de 68, o turismo como atividade lucrativa e o amadurecimento do movimento negro. Os trios se tornaram palcos, renasciam os afoxés e os negros, orgulhosos do ‘black is beautiful', criaram os primeiros blocos afro - Ilê Aiyê e Badauê -, como contraponto aos blocos de brancos abonados - Os Internacionais e Os Corujas.
Um grito de afirmação: ‘nós também podemos!'. Nos anos 1980, a fusão de ritmos aconteceu de forma surpreendente, gerando a tal ‘axé music', termo usado por roqueiros para sacanear o som afro dos tambores, que emanava dos guetos. Foi aí que o menino Luis Caldas, recém saído do Tapajós, criou um ‘hit' de verão em cima de uma brincadeira de rua de gosto duvidoso, em parceria com Paulinho Camafeu, que dizia: ‘Nega do cabelo duro/que não gosta de pentear/quando passa na Baixa do Tubo/o negão começa a gritar/ Pega ela aí/pega ela aí/ pra quê?...'
E a galera criou uma dança ousada no embalo. Luis foi ao Chacrinha e virou sucesso nacional com seu ‘Fricote', batizado pela mídia de ‘axé music'. O empresário Wesley Rangel intuiu ali um bom negócio e abriu as portas da gravadora WR, possibilitando a "música baiana". Nessa onda surfaram as estrelas do ‘axé'. Os trios tornaram-se cada vez mais possantes, magnetizadores.
A pretexto de privatizar a folia em grupos e lucrar com isso, trios e bandas atrelaram-se aos grandes blocos que, com os ‘cordeiros', abriam espaços pela avenida, ruas cada vez mais apertadas pelos decibéis e o empurra-empurra. Os blocos percussivos esmagados, espremidos, invisíveis, quase inaudíveis. É nesse contexto que Gerônimo criou o manifesto ‘Eu Sou Negão', registro do embate étnico e cultural que acontecia nas ruas.
Independente da afirmação até internacional de blocos afro como Olodum, Ilê Aiyê, Araketu, afoxé Filhos de Gandhy... trios e bandas tornaram-se referência, abarcando muitos negócios.
Os trios alcançaram sofisticação tecnológica de modernos estúdios, super-palcos móveis tão gigantescos que quase não cabem mais na avenida, o som a tremelicar os sobrados da velha cidade. Assim surgiram o novo circuito Barra/Ondina e os camarotes chiques. Segregação, mas retrato de nossas contradições.
O carnaval é hoje o nosso principal produto de turismo e sempre escancarou as nossas mazelas e delícias. O modelito gera avidez e grana. Pra uns. Champã e crack, beijo na boca e bala perdida. Luxo e lixo. Isso é a Bahia. Laroiê ! Com a licença do dono do fuzuê.