Saúde

Médico cubano vê vinda ao Brasil como chance de fazer pé-de-meia

Veja reportagem da Folha de SP
Folha de SP , SP | 01/09/2013 às 11:29
"Mãe, o que você acha de Carlos David?", pergunta Laura, 25, com uma barriga redonda em um vestido florido, a Ana, uma médica de 49 anos que deixará Havana rumo ao Brasil no dia 10.

"Gosto muito", diz a médica, que diz que o terceiro neto nasce em novembro. "Com o primeiro foi o mesmo. Eu estava na Venezuela, mas pude vir para o parto. Foi bom. Agora não sei como vai ser."

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Não só Ana, funcionária de um hospital de Havana, mas também seu marido, em missão técnica pelo governo de Cuba num país africano, podem perder o nascimento.

A médica não tem dúvida, no entanto, de que valerá a pena ser um dos 4.000 profissionais recrutados por Cuba para o Mais Médicos.

Ela diz não saber quanto ganhará no Brasil. Ouviu que serão US$ 1.000 (R$ 2.380) dos US$ 4.201 (R$ 10 mil) que o governo brasileiro pagará ao cubano por médico, mas isso não lhe importa.

"Por pior que seja o país, vale a pena. Sempre o salário vai ser maior do que aqui. E o que ganhamos vale muito aqui em Cuba. Além do mais, é uma coisa que não é fácil de entender. Nós somos formados desde pequenos com outra ideia de medicina, gostamos de servir", diz Ana.

Sem os sete anos em que ela e o marido passaram na Venezuela, em missão similar a que cumprirá no Brasil, ela jamais compraria a casa própria subsidiada pelo Estado no valor de US$ 4.000.

Em Cuba, há duas moedas vigentes. O peso cubano, da maioria dos salários e de alguns produtos básicos, e o CUC, equivalente ao dólar, que compra tudo o mais.

A médica, com mestrado em emergências médicas e professora, ganha algo como US$ 26 mensais --ou R$ 62.

META DE VIDA

O único nome real do relato acima é o do bebê. Ana, seus familiares e os demais profissionais de saúde cubanos ouvidos pela Folha em Havana mantêm o anonimato por não estarem autorizados a falar com a imprensa.

Em muitas das histórias, a conclusão de Ana se repetiu. Enquanto ao chegar ao Brasil profissionais cubanos foram chamados de "escravos" nesta semana, viajar ao exterior como funcionário do governo, mesmo sob restrições, é algo disputado.

No caso dos médicos, pode ser a oportunidade de fugir de salários irrisórios e de dois ou três bicos. Mais importante: pode ser a chance de obter o dinheiro que não conseguiriam a vida toda.

"Todos os cinco que trabalham comigo têm outros trabalhos. Um vende perfume, o outro é carpinteiro, outra aluga equipamento de som e outro é taxista. Eu, que estudei para ter meu dinheiro e ser independente, vivo do meu marido, que tem curso técnico", explica a pediatra Consuelo, 43, que tenta se inscrever de maneira independente no Mais Médicos.

Consuelo conta que as ferramentas do médico-carpinteiro e o equipamento de som do colega empreendedor foram conquistas dos dois após voltarem da missão na Venezuela, onde, como Ana, ganhavam US$ 200 (R$ 476).

A família em Cuba recebia até US$ 100 (R$ 238) mensais. Todos ganham ainda um cartão que dá 30% de desconto nas lojas dolarizadas.

Para Roberto Veiga, editor da influente revista cubana ligada à igreja "Espacio Laical", é razoável que o governo cubano cobre um "imposto" dos médicos que leva para trabalhar no estrangeiro.

E o governo conseguiria esse recrutamento se o salário em Cuba fosse maior?

"Os baixos salários são a expressão-chave da crise econômica. Mas, ainda que houvesse em Cuba a possibilidade de um salário digno, creio que a superpopulação de médicos faria a possibilidade de trabalho no exterior atrativa, talvez de outra maneira", diz.

Pavel Vidal Alejandro, economista cubano que atua em universidade da Colômbia, diz que para explicar o fenômeno inteiro é preciso voltar à queda da URSS, quando a ilha comunista perdeu seu aliado político e econômico. Os salários são hoje 70% do que eram em 1989 e os preços se multiplicaram por oito.

"É verdade que os médicos cubanos vão receber no Brasil bem mais do que recebem em Cuba. Mas também é verdade que o Estado também vai receber bem mais alto rendimento. A empresa estatal tem um modelo de rentabilidade de negócio baseado em baixíssimos salários. O que está ocorrendo é uma extensão desse modelo, levado à Venezuela, ao Brasil."