Veja depoimento a Marie Claire
Marie Claire , RS |
22/07/2013 às 14:32
Conheça a história de Débora de Aranha Haupt, 32 anos
Foto: MC
A gaúcha Débora de Aranha Haupt, 32 anos, sofreu um acidente de moto com o marido quando ia para a aula de inglês. Ele cortou o joelho, ela ficou tetraplégica. Com o tempo, Débora recuperou parte dos movimentos dos braços e decidiu que, mesmo presa a uma cadeira de rodas, não abdicaria do sonho da maternidade. Seis anos e vários tratamentos depois, ela deu à luz Manuela, que completou um ano no último mês de janeiro
Conheci o amor da minha vida dançando. Durante cinco anos, Jair e eu viajamos pelo Rio Grande do Sul participando de concursos de dança tradicional gaúcha. Tinha 17 anos quando me apaixonei por ele. Eu trabalhava muito. Em Farroupilha, durante o dia, ajudava meus pais com o negócio deles e, à noite, dava aulas de espanhol em uma escola de Bento Gonçalves, cidade vizinha. Naquela época, ainda não tinha formação universitária, mas era ótima professora. Comecei meio sem querer, mas logo percebi que ensinar me realizava.
Quando fui convidada a lecionar espanhol em tempo integral, aceitei imediatamente. Eu tinha 26 anos e já estava casada com o Jair há três. Tinha certeza de que minha carreira iria decolar. De cara, me tornei professora de 11 turmas. Dava aulas de manhã, à tarde e à noite todos os dias, e às sextas-feiras, ia para a escola aprender inglês. Mas essa rotina durou apenas um mês.
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Jair e eu marcamos uma viagem de final de semana. Como em outras sextas-feiras, ele me daria carona até a escola para a aula de inglês. De lá, sairíamos para encontrar uns amigos e seguir viagem. Por isso, nossa moto estava abarrotada de mochilas e ele dirigia devagar. Perto das 5h da tarde do dia 25 de agosto de 2006, saímos da nossa casa e pegamos a estrada para percorrer os conhecidos 20 e poucos quilômetros que separam Farroupilha, onde morávamos, de Bento Gonçalves, onde eu trabalhava e estudava. O dia estava lindo. Logo à nossa frente, dois carros esperavam, um ao lado do outro, para cruzar a estrada por onde seguíamos. O primeiro arrancou para atravessar a via, mas nos viu e parou a tempo. O motorista do segundo carro fez quase o mesmo. Só que ele não nos viu. E não parou.
O ACIDENTE
Fui arremessada e, como um mergulhador que bate a cabeça no fundo do lago, bati com força no asfalto. Meu capacete resistiu, mas sabia que algo sério tinha acontecido. Não senti nada. Pior: percebia que não sentia nada. Do pescoço para baixo, meu corpo parecia estar preso num sono profundo. Não perdi a consciência. Tive medo. Vi o socorro chegar. Vi o hospital. Vi os médicos e senti, por fim, que estava salva. Mas não senti quando uma agulha alfinetou os meus pés. Nem as minhas pernas. Nem a minha barriga. Nem os meus braços. O diagnóstico era conclusivo: fiquei tetraplégica.
De tão ciente da gravidade do meu estado, meu único alívio era não correr o risco de morrer, que eu corria sem saber. Uma cirurgia deveria implantar réplicas de titânio nas três vértebras que a tragédia tirou de mim. Fui submetida à primeira operação dois dias após o acidente. E a segunda ficou para a semana seguinte, a mesma em que meu pai foi diagnosticado com câncer.
Não era fácil admitir que eu não podia mexer um só dedo. Não era fácil ter alguém escovando meus dentes, me dando comida na boca. Mas nunca me entreguei. Durante os dias em que fiquei entubada, não conseguia falar, mas ria. Ria porque sabia que a minha vontade de viver era tão importante para a minha recuperação quanto a medicina que me salvou do acidente. Foram 45 dias de hospitalização: 30 na UTI e 15 no quarto. Nos primeiros dias do pós-operatório, tive uma surpresa maravilhosa.O inchaço do trauma e das cirurgias começou a diminuir, e eu recuperei parte do movimento dos meus braços. Até hoje, a minha mobilidade é a mesma. Sensibilidade total, só dos ombros para cima. Consigo segurar uma xícara, mas não mexo as mãos, que ficam o tempo todo quase fechadas.
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Enquanto estava sob tratamento intensivo, tive três pneumonias. Essa inflamação respiratória e a lesão na medula deixaram parte de um dos meus pulmões seriamente debilitada. De acordo com os médicos, essa porção quase morta teria de ser retirada cirurgicamente. De novo, não me entreguei. Com ajuda de fisioterapia, fiz meus pulmões renascerem, voltarem ao normal sem cirurgia.
A UTI se transformou na minha residência naquele mês de internação, entre agosto e setembro de 2006. Tanto que chorei com as enfermeiras quando recebi alta para o quarto. Depois dos últimos 15 dias no hospital, iria finalmente voltar para a minha casa. Mas não estava pronta para voltar para o meu quarto. Havia escadas entre nós. Até que pudéssemos adaptar os ambientes, o que consegui fazer graças a uma herança deixada por meu avô, voltei a morar com os meus pais. Infelizmente, o que me esperava lá estava longe de ser um alívio. Debilitado por causa do tratamento contra o câncer, meu pai, assim como eu, estava preso a uma cadeira de rodas. Dependíamos da minha mãe e do meu marido para tudo e nenhum de nós sabia como lidar com a situação. Era muito difícil, mas tentávamos deixar tudo mais leve, ríamos juntos da nossa tragédia.
Quatro meses depois do acidente, fui pela primeira vez a Brasília, onde comecei um tratamento na Rede Sarah, que oferece reabilitação totalmente gratuita. Lá, com instrumentos adaptados às minhas mãos, reaprendi a escovar os dentes, a pentear meu cabelo, a comer sozinha. Nunca tinha segurado um pincel, mas até a pintar, eu aprendi. Com um apoio enorme do Jair – que do acidente só ganhou um corte no joelho –, da minha família, da dele e da equipe do hospital, fui encaixando a minha vida nos eixos da minha cadeira de rodas. Seis semanas depois, voltei para a minha casa. Só não digo que voltei a ser a Débora de sempre porque, no fundo, nunca deixei de ser quem eu era.
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Claro que não é possível ter uma mudança de vida como a minha sem sentir por tudo que não se pode mais fazer. Eu amava dançar. Até que fui a uma festa de casamento e vi todo mundo feliz, dançando, e fiquei arrasada. Mas lembrei do que uma psicóloga do Sarah me disse. Ela me fez prometer que, na primeira vez que sentisse vontade de dançar, eu dançaria. Olhei para a pista e pensei: “Quer saber? Vou lá!”. Foi a minha libertação. Dancei como pude, sentada, mas dancei. E nunca mais deixei de me divertir só porque tinha que dançar sobre a cadeira. Seis meses depois daquela sexta-feira, eu estava de volta às aulas ensinando espanhol. Foi nessa época que perdi meu pai.
No fim das contas, o meu acidente e a doença dele nos colocaram de volta na mesma casa, e ganhamos de presente a convivência diária nos últimos meses da vida dele.
Fui professora por mais um ano e meio e, durante esse período, resolvi fazer faculdade. Prestei vestibular em duas universidades. Passei em ambas e optei pela que oferecia ensino à distância. Com as adaptações desenvolvidas em Brasília, consegui usar o computador, o que tornou possível conquistar o meu diploma em Letras. Mas dar aulas já não me realizava mais. Não conseguia escrever no quadro com a mesma agilidade nem solucionar as dúvidas dos alunos como fazia antes, e isso me frustrava. A ideia não era voltar a trabalhar só para me sentir útil. Meu plano era ser feliz. E fazer o meu marido feliz também.
Jair e eu fomos um casal desde muito cedo, passamos uma vida juntos, aprendendo juntos. A questão sexual sempre me preocupou. Nós tivemos que nos conhecer de novo, começar do zero. No Sarah, existe um programa de reeducação sexual. A troca de experiências é muito importante. Na minha primeira reunião, uma das meninas comentou que a vida sexual dela tinha melhorado muito depois da lesão medular. E eu que, seis meses depois do acidente, ainda não tinha transado, era só ouvidos.
Em seguida, resolvi testar a teoria. A primeira vez foi complicada, porque nenhum de nós sabia exatamente o que fazer. Eu não sabia o que ia sentir e tinha medo de não sentir nada, de ficar inerte. Mas foi maravilhoso. Vi que era possível sentir prazer e fazer o meu marido feliz. Nós só precisaríamos de calma para descobrir exatamente como. A comparação entre as sensações de antes e depois é inevitável, mas é parte de um processo de aprendizagem, como em qualquer relacionamento. Hoje, nós dois sabemos que, por mais incrível que pareça, um dos lugares onde eu mais tenho sensibilidade é justamente na nuca, no local da minha lesão.
As pessoas acham que cadeirantes não têm vida sexual e esquecem que eu, por exemplo, tenho um casamento de nove anos. O Jair me surpreende todos os dias. Seria um horror se ele me abandonasse, mas nunca deixei de falar sobre as nossas dificuldades por medo de correr esse risco. Jamais admitiria que ele continuasse comigo por pena. Cheguei a ter medo que ele se sentisse culpado pelo acidente, mas isso não aconteceu. Não temos sequelas psicológicas, pois não tínhamos como evitar o acidente. Quero que ele esteja do meu lado sempre. Existem algumas dificuldades, mas existem outras graças. Garanto que poucas pessoas sabem como é fazer sexo numa cadeira de rodas. É só ter criatividade. Chegaram a perguntar se a minha gravidez foi resultado de inseminação artificial. Lógico que não. Fazer a Manu foi uma delícia!
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Preparei-me psicologicamente durante dois anos para a gravidez. Para uma mãe, saber que não poderá atender todas as necessidades de um filho dói muito. Voltei ao Sarah para buscar orientação e, como acompanhamento de uma médica especialista em gravidez de alto risco, começamos as tentativas para ter um bebê em dezembro de 2010.
Em abril, quando já estávamos acostumados comas negativas, alguns amigos nos convidaram para fazer uma viagem a Las Vegas dali a algum tempo. Achamos uma boa ideia. Mas a minha menstruação atrasou. Fiz os cálculos e, caso estivesse grávida, iria para Las Vegas com uma barriga de cinco meses. Preferi esperar para ter certeza da gravidez antes de comprar as passagens. Pedi para o Jair comprar um teste de gravidez. Deu positivo. Quando contamos aos amigos que não viajaríamos, foi uma festa. Todos sabiam o motivo. Nunca um cancelamento foi tão comemorado como aquele. Recebi o diploma universitário exibindo a minha barriga.
A gravidez foi muito tranquila. Normalmente, as gestantes como eu fazem cesariana com anestesia geral. Eu, que passei pelo horror do meu acidente sem perder um segundo de consciência, não admitiria dormir no nascimento da minha filha. Os médicos pesquisaram e concluíram que eu poderia tê-la de parto normal. Mas as dores preocupavam. Não é porque não sinto dor que ela deixa de existir – o fenômeno chama-se disreflexia. Quando tenho uma dor de estômago, não sinto o incômodo localizado, mas posso ter calafrios ou dor de cabeça, por exemplo. É esse tipo de sensação que me avisa quando algo não está bem no meu corpo. Por isso, mesmo não tendo sensibilidade, o parto da Manu foi com analgesia. As contrações vieram em forma de arrepios. Deve ter sido o parto mais tranquilo de todos os tempos. A sala estava à meia luz, uma música clássica tocava baixinho. O engraçado é que era eu quem dizia para a enfermeira: “Força, Karen, força!”, porque quem fazia o esforço todo era ela, empurrando a minha barriga a cada contração. Todo mundo chorou quando a Manuela nasceu, no dia 10 de janeiro de 2012. Foi lindo.
Com a Manu, desde sempre, foi incrível. No início, vivi momentos de pavor. Não conseguia acalmar a minha própria filha. Toda mãe sente insegurança, mas acho que senti mais. Isso porque tinha que delegar a outras pessoas muitos cuidados. Mas sabia que seria assim. Amamentei tranquilamente, mas precisava de alguém do meu lado o tempo todo. Chorei, tive medo e não posso negar que, às vezes, fico triste pelo que não posso fazer por ela. Mas todo o resto que consigo fazer é tão bom e tão maior... Todos os dias descubro formas de estar mais perto da minha filha. Não troco fraldas, não consigo dar banho. As minhas mãos nesses momentos são as do Jair ou as da Vera, a babá, mas estou sempre ao lado. Consigo dar mamadeira, brinco com ela.
UMA MATERNIDADE ESPECIAL
A Manu se acostumou a brincar comigo sem estar no meu colo. Coloco-a sobre a mesa e beijo, abraço, aperto. A Manu já bate palmas com as mãozinhas fechadas, como as minhas, que não consigo mais abrir. Parece que ela sabe. Se o Jair chega perto dela, estica os braços e pede colo, pede para sair do berço.
Comigo, não. Ela pode até reclamar que cansou da brincadeira, mas não me pede o que não posso dar. E fica louca com a minha cadeira! É lindo ver que a Manu escuta, reconhece o barulho do motor da cadeira e sabe quando estou chegando. Sei que o que ficou do acidente é para o resto da minha vida. E também que, independentemente de quem seja, sempre vou precisar de alguém ao meu lado.
No meio da noite, se estiver em uma posição desconfortável, vou precisar acordar o Jair e pedir: “Amor, me vira?”. E ele vai estar ali para me virar. Sempre fomos muito unidos, mas hoje nossa ligação aumentou. Quando a Manu crescer mais um pouco, vou fazer uma pós-graduação e voltar a trabalhar. Mas, agora, o que eu mais quero é ver a minha filha caminhando para mim, correndo em direção à minha cadeira, subindo nela e dançando com a gente.”