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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA DO UCRANIANO VASSILI GROSSMAN, A ESTRADA

Uma narrativa onde mescla o realismo e a crueldade da guerra com contos de uma sensibilidade extraordinária, de quem foi correspondente do Exército Vermelho
19/04/2025 às 18:59

   Vassili Grossman é um autor russo pouco lido no Brasil. Está muito distante em conhecimento do público de Liev Tolstói e Fiódor Dostoiévski os mais famosos escritores russos do século XIX e da literatura russa mundial. Vassili é um autor que viveu noutra época - século XX - e foi um dos mais destacados correspondentes de guerra do Exército Vermelho, especialmente na Batalha de Leningrado contra os alemães, e sua obra enfeixa relatos da alma do povo russo e do Leste Europeu diante da ocupação nazista.

  Uma narrativa onde mescla o realismo e a crueldade da guerra com contos de uma sensibilidade extraordinária. E ao menos dois livros dos seus destacados livros são de intensa profundidade (O livro Negro e Vida e Destino) em que expõe o amor, o terror, a família, os modos de vida do povo russo, os dramas nos campos de concentração (a Shoah, o holocausto na Rússia): enfim, a guerra e a vida.

    O livro que vamos comentar se intitulada Vassili Grossman, "A Estrada" (Editora Alfaguara, tradução do russo por Irineu do Franco Perpétuo, 2ª impressão, 2015, direitos reservados à Editora Schwarcz, RJ, 330 páginas, capa Tiago Lacaz, R$66,00 Amazon) coletânea de seus contos mais famosos (introdução e comentários de Robert Chandler e Yury Bit-Yunan) e também um pouco de sua vida pessoal, no dizer dos analistas, um sortudo, uma exceção, pois, conseguiu sobreviver ao grande expurgo (e morte) promovida pelo ditador Jseph Stalin. 

   O título do livro (A estrada) remete a um dos seus contos sobre a condição humana durante a II Grande Guerra e a interlocução com uma mula (Giu), de um realismo fantástico atormentador, belo, intenso, profundo por sua criatividade. 

   Começa assim no segundo parágrafo: “As pessoas ficaram surpresas se soubessem em quanta coisa a mula reparou no dia do começo da guerra, no Leste, no rádio que tocava sem parar, na música, nas portas escancaradas da estrebaria, nas multidões de mulheres com crianças junto caserna, nas bandeiras sobre a caserna, no cheiro do vinho naqueles que antes não cheiravam a álcool, e nas mãos trêmulas do boleiro Nicolò ao tirar Giu do boxe e colocar-lhe a coelheira”.

   É a vida vista na guerra através do olhar de um animal e a estrada, o caminho a percorrer que, em síntese, representava a condição humana e a liberdade.

   “Quando Giu foi atrelada pela primeira vez ficou secretamente com raiva da falta de sentido do longo asfalto () Depois, (a mula) fez as pazes com a estrada, e às vezes pensava que ela a libertaria da telega (espécie de carruagem) e do boleiro (). A guerra e o frio esmagavam a mula de modo lento e inexorável () ... e Giu respondeu à enorme ofensiva da indiferença que se preparava para aniquilá-la com uma indiferença própria e desmedida. () Tornou-se uma sombra de si mesmo. Para Giu, tornara-se indiferente; era como se uma mula tivesse resolvido o dilema de Hamelt.

    Assim, nos pareceu o livro (no geral), uma estrada, uma busca do autor por um mundo melhor que não conhecia, salvo na literatura. Sua vida pessoal esteve tão diretamente envolvida com a guerra, sua mãe morta num campo de concentração nazista, ele atormentado até no pós guerra pela perseguição stalinista a intelectuais e a membros do Exército Vermelho de alta patente e que lutaram contra os alemães.

    Seus contos e narrativas como correspondente de guerra trazem além das informações pertinentes as atrocidades do nazifascismo, esse lado sutil próprio de um intelectual que amava a poesia, o estilo, a linguagem refinada e assim por diante. 

   Noutro conto intitulado “O Alce” revela toda a sua genialidade e sensibilidade como escritor, onde traduz a delicadeza do amor, da família e da compaixão, O drama de um doente terminal a observar a cabeça de alce empalhado pendurado na parede, como seu único troféu e companheiro dos dias finais. 

   Rememorava para si mesmo: - Dimitri Petróvich, engenheiro especialista em turbinas, já fora atraente, sedutor, apreciava coisas bonitas, vinho, ópera, era um aficionado da caça. E tudo havia mudado em sua vida. Estava só, doente terminal, abandonado à própria sorte por sua família e restava-lhe, ao menos o alce.

   “No começo de sua doença colegas traziam-lhe presentes, flores, doces, mas logo deixaram de visita-lo () a filha que se mudara para Kúibichev, depois do casamento, a princípio lhe enviara cartas detalhadas, mas agora só escrevia à mãe () Certo dia, os colegas e amigos deixaram de acreditar no seu restabelecimento e perderam o interesse nele. () A morte não apenas o atraia; também o atemorizava”.

   Restara-lhe o alce na parede e as lembranças atormentadoras de como matara-o numa caçada e viu o filho do animal com a perna quebrada e presa num galho. “Mesmo quando sua mãe caiu com o tiro, continuou tentando convencê-la a não lhe abandonar. E não a abandonou”. Essas lembranças atrozes chegaram-lhe no final da vida: a compaixão tardia. E via-se, diante do alce empalhado na parede, por ironia, seu último parceiro, silencioso que estava, porém, a lhe amparar intimamente.

 Em “O inferno de Treblinka” a narrativa mais forte do livro – mais ensaio do que conto – onde expõe a vida e a morte de milhares de judeus que foram levados de trem para a execução em câmaras de gás, as mais sofisticadas da época, num cenário disfarçado de paraíso com um bosque ao fundo, mas que era a porta do inferno, pois, os que lá entraram, se tornavam defuntos enterrados as pilhas em covas rasas.

  É um texto fortíssimo. Um trecho: “A preparação do grupo recém chegado caracterizava-se pelo esmagamento da vontade individual, com um incessante fluxo de ordens abruptas. Tais ordens eram proferidas com aquele célebre timbre de voz do qual o Exército Alemão se orgulha, um timbre que por si só revela e prova que os alemães pertencem a uma raça de senhores. A letra “r” ao mesmo tempo gutural e dura, soa como um cnute. “Achtung” (atenção) dizia a multidão: homens permaneçam onde estão, mulheres e crianças, dispam-se no barracão à esquerda”.

    Em média – diz o autor – as câmaras do inferno (de gás) eram carregadas pelo menos duas ou três vezes ao dia ou até dez vezes no máximo, o que representava a morte de 6 mil a 10 mil pessoas ao dia, 300.000 ao mês. E, adiante, já com a repercussão mundial desses crimes os alemães criaram os fornos-grelhas que incinerava 3.500 a 4.000 cadáveres de uma só vez. Um crematório do interno dos mais temidos demônios.

   Toda essa narrativa está em “A Estrada”, de Vassili Grossman, livro que não nos mostra apenas esse lado horripilante da guerra, da faxina étnica nazista, mas também uma parte da alma do povo russo nos magníficos contos apresentados com a pena suave do autor, o qual, diante de tantos momentos de adversidade em que viveu conseguiu colocar o amor acima do ódio.