Livro primoroso com conceitos filosóficos e éticos válidos até hoje passados mais de 2.700 anos de sua publicação
Às vezes ou até muitas vezes fico me questionando se ainda é válido nos dias atuais comentar as obras filosóficas do passado distante e se isso tem alguma influência ou ao menos desperta interesse nos leitores. Diria que sim. Não saberia, no entanto, mensurar qual essa percepção, a que ponto, de fato, os leitores absorvem algum conhecimento com essas leituras pois existem autores com pensamentos contemporâneos que abordar temas filosóficos.
O certo é que essas obras existem e estão enraizadas na cultura mundial e não perderam sua atualidade. Quando não, inspiram poetas e outros no debulhar da Odisseia, o poema épico de Homero, lançado no século VII a.C. e a Eneida, poema latino de Virgílio, século I a.C. Vamos falar de uma dessas preciosidades filosóficas que é “A República”, de Platão (Editora Martin Claret, tradução de Pietro Nassetti, capa Cláudio Gianfardoni, 320 páginas, R$36,00 na Estante Virtual) que estabelece princípios éticos para nortear o mundo social. E, em se tratando de ética, sobretudo nesses tempos pretéritos onde se fala muito no estado democrático de direito e pouco se pratica, a obra de Platão é atual e pertinente.
Todo diálogo do livro dá-se em primeira pessoa, conferido por Sócrates, basicamente em busca de uma definição para o conceito de justiça, o que leva o filósofo grego a especular sobre o seu antônimo (a injustiça) em diferentes regimes políticos e da proposta de uma cidade ideal governada por filósofos, bela e com sublime prazer para toda a população.
O início do livro é pura filosofia, conceitos. Sócrates vai ao Pireu com Glauco – filho de Ariston – para fazer suas orações a deusa (estamos falando de uma época politeísta). A ele se juntam Polemarco - irmão de Glauco - e mais Nicérato filho de Nícias. Daí foram para a casa de Polemarco e por lá encontraram Lísias e Eutidemo – irmãos de Polemarco; e mais Trasímaco de Calcedonia, Carmantidas de Paianieu e Clitofonte- filho de Aristodonto – e Céfalo, pai de Polemarco.
Os diálogos começam a partir desse encontro e Céfalo saudou-o com essas palavras: - Ó Sócrates, tu também quase não desses mais ao Pireu para nos veres. Mas devias fazê-lo, porque, se eu ainda tivesse forças para ir facilmente até à cidade, não seria preciso tu vires aqui, mas nós é que íamos visitar-te. Agora, porém, tu é que deves aparecer aqui mais vezes. Fica a sabe-lo bem; na medida em que vão murchando porá um os prazeres físicos, nessa mesma aumentam o desejo e o prazer da conversa. Não deixes de estar na companhia desses jovens que vem também aqui a nossa casa, como a casa de amigos, e de amigos muito íntimos.
Assim respondeu Sócrates: - Com certeza, Céfalo. É para mim um prazer conversar com pessoas de idade e bastante avançada. Efetivamente, parece-me que devemos informar-nos junto deles, como de pessoas que que foram num caminho que talvez tínhamos de percorrer, sobre as suas características, se é áspero e difícil, ou fácil e transitável. Teria até gosto em me perguntar qual o teu parecer sobre este assunto – uma vez que chegastes já esse período da vida a que os poetas chamam estar “no limiar da velhice” se é uma parte difícil da vida, ou que declarações tem a fazer.
A partir dessa inicial acontecem perguntas e respostas primorosas nesse principiar do texto Céfalo arguindo que a velhice está relacionada com o caráter das pessoas: “Se elas forem sensatas e bem dispostas, também a velhice é moderadamente penosa; caso contrário óh! Sócrates, quer a velhice; quer a juventude, serão pesadas a quem assim não for”.
A conversa prossegue quando se aborda o mais polêmico dos temas: a justiça após a citação de um conceito preconizado por Simônides que, “a maneira dos poetas, a justiça consiste em restituir a cada um o que lhe convém, e a isso chamou ele restituir o que é devido”.
Oh! Céus! – disse Sócrates- Então, se alguém lhe perguntasse “Simônides, a arte a que chamas de medicina, a que é que dá o que devido e conveniente?”. Que se supõe que ele responderia?
- É evidente que dá ao corpo os remédios, a comida e a bebida.
- E a arte que chamam de culinária, a que é que dá o que é devido e conveniente?
- Dá os alimentos, os temperos.
- Bem, e a arte que chamam de justiça, o que é que dá o que é devido?
- Se temos que ser consequentes com o que se disse antes, de ajuda aos amigos e prejuízo aos inimigos.
- Logo, quando o dinheiro está sem se utilizar é que a justiça por isso mesmo, é útil? () E, em tudo o mais, e para cada coisa, a justiça é inútil, quando nos servimos dela, e útil, quando não nos servimos.
Com base no tema justiça, o filósofo expõe suas ideias políticas, sociais, do comportamento humano, filosóficas e históricas e assim por diante imaginando um estado ideal no conceito pleno de justiça. E, claro, vai colocando em debate o que considera justo sobre as mais diferentes formas e suposições o que obriga seus interlocutores a refletirem ora apoiando seus pontos de vistas; ora contestando e os leitores também.
Quando ele diz: “Se o homem justo é hábil para guardar dinheiro, é também hábil para roubar Polemiza: “Logo, o homem justo revela-se-nos, ao que parece, como uma espécie de ladrão, e isso é provável que o tenhas aprendido em Homero, e afirma que ele excedia todos os homens em roubar e em fazer juras.
Estabeleceu Trasímaco “que a justiça é a conveniência do mais poderoso. () -Precisando os fatos, o mais possível: o governante na medida em que está no governo, não se engana; se não se engana, promulga a lei que é melhor para ele, e é essa que deve ser seguida pelos súditos”. Intercede Sócrates: - Ou não sabes que o amor das honrarias e das riquezas é considerado uma vergonham, e o é de fato? () Ora, o maior dos castigos é ser governador ´por quem é pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos. ()
Portanto, de modo algum concordo com Trasímaco, ao declarar que é melhor a vida do injusto do que a do justo. () Ora, tu qual escolhes, Glauco? Qual das duas afirmações te parece mais verídica?
Pois, então – segue Sócrates: Trasímaco! Responde-nos desde o começo: afirmas que a perfeita injustiça é útil que a perfeita justiça?
- É precisamente isto que em afirmo e dei as minhas razões.
- Vamos lá, como qualificas essas coisas? Dás a uma delas o nome de virtude; e à outra o de vicio?
- Como não?
- Portanto, à justiça chamas virtude, e a injustiuça, vício?
- É natural, meu caríssimo amigo: não há dúvida uma vez que afirmo que a injustiça é proveitosa, ao passo que a justiça, não.
- O que queres dizer, não o ignoro. Mas o que me surpreende é que tu coloques a injustiça no grupo de virtude e da sabedoria; e a justiça no grupo contrário.
- É assim mesmo que entendo. O injusto é bom e o justo não é uma coisa nem outra.
- Decerto Trasímano – é porque a injustiça produz nuns e noutros as revoltas, os ódios, as contendas; ao passo que a justiça gera a concórdia e a amizade.
- Portanto – continou Sócrates – já é perfeitamente claro para nós, o que seja cometer injustiças, ser injusto e praticar a justiça, uma vez que o é o que seja a injustiça e a justiça?
- Como assim?
- As coisas sãs produzem a saúde; as doentias, as doenças.
- Produzem.
- E as coisas justas não produzem a justiça e as injustas a injustiça?
É lógico que sim.
Em seguida, o grupo trata das leis, da formação da cidade ideal e dos postulados da República e os papéis dos cidadãos e da efetivação das leis. – A maneira como a cidade deve tratar a filosofia, para não se perder. Pois tudo o que é grandioso é perigoso; e é verdade como diz o adágio, que o que é belo é difícil.
No livro VIII – alude citando Glauco_ - Concordamos que na cidade que quiser ser bem administrada na perfeição, haverá comunidades das mulheres, dos filhos e de toda a educação e do mesmo modo comunidades de ocupações da guerra e na paz, e dentre eles serão soberanos aqueles que mais se distinguirem na filosofia e na guerra.,
Estabeleceu-se quatro formas de governo: a constituição (timocracia), a oligarquia, a democracia e a tirania
Nos debates, Sócrates argui: - Vamos lá então tentar dizer de que maneira a timocracia se originou da aristocracia. ´R simples de ver que toda constituição muda por virtude daquela mesmo que detém o poder, quando a sedição se origina do seu seio.
Bem, a sequência é longa e o autor tenta mostrar o estado ideal e o ser humano do mesmo modo.
Platão escreveu a sua filosofia sob a forma de diálogos, uma forma que requer diferentes vozes e o fluxo e refluxo dos argumentos.
Segundo Simon Blackburn., em “Plato1s Republic: a biography”m “ a obra arrasta-se infindavelmente de forma labiríntica. Longe de serem convincentes, os argumentos vão desde os menos sólidos até aos tão absurdamente frágeis que levam alguns intérpretes a negar que alguma vez tenha havido a intenção de os apresentar como argumentos. A teoria sobre a natureza humana, tal como se apresenta, é fantasiosa e pode parecer inconsistente. As suas supostas implicações políticas são fundamentalmente desagradáveis e muitas vezes chocantes. Tanto quanto Platão nos deixou um legado no domínio da política, incluem-se nele a teocracia ou governo de sacerdotes, o militarismo, o nacionalismo, a hierarquia, o conservadorismo, o totalitarismo e o completo desprezo pelas estruturas económicas da sociedade, nascido da sua condição privilegiada de escravagista. Na República, Platão consegue ligar-se simultaneamente ao mais rígido dos conservadorismos e à mais extrema e visionária das utopias. Ainda por cima, a teoria do conhecimento da obra é um verdadeiro desastre. A tentativa de chegar ao que aparentemente pretendia — mostrar que o indivíduo moral, e só ele, é feliz — é, em grande medida, uma sequência de passes de magia”.
Livro recomendado para estudantes de filosofia, porém, acessível a qualquer leitor e que contém análises e dizeres que se assemelham a muitos os que estão sendo praticados no Brasil de hoje e de ontem.