O livro é complexo e o ensaio embora possa ser lido por qualquer leitor de conhecimento superior, mas, ainda assim necessita de releituras em trechos e debates internos permanentes
Henri Bergson foi laureado com o Nobel de Literatura em 1927. Parisiense nascido em 1859 e falecido aos 82 anos durante a II Guerra Mundial, este filósofo e diplomata francês ficou conhecido e estudado internacionalmente diante seus ensaios sobre a relação do corpo com o espirito, tema atemporal e atualíssimo, sobretudo no que diz respeito a evolução criadora, moral, religião e outros segmentos que são agregados a psicologia.
Quando se lê Bergson, em determinados momentos, tem-se a impressão de que o escrito saiu da pena de psicólogo, ainda que, em 1927, quando ganhou o Nobel de Literatura, a psicologia estivesse apenas engatinhando como ciência.
Sua obra filosófica (e não psicológica), no entanto, é estudada pelo mundo acadêmico e literário ainda nos dias atuais, não somente na literatura, mas também na neuropsicologia e bioética, entre outras.
Comentamos, então, seu livro mais proeminente "Matéria e Memória" (Editora Martin Fontes, 1ª edição na França 1939, 1ª edição no Brasil 1990, 2ª edição 2011, tradução Paulo Neves. SP, 291 páginas, R$56,00 nos portais da internet) onde aborda em ensaio as relações do corpo com o espírito.
Para Bergson são relações indissociáveis: "O espirito retira da matéria as percepções que serão seu alimento, e as devolve a ela na forma de movimento, em que imprimiu sua liberdade".
O autor dividiu seu ensaio em quatro partes e uma conclusão. Na primeira aborda “da seleção das imagens para a representação – o papel do corpo”; na segunda “do reconhecimento das imagens, a memória e o cérebro”; na parte 3, “da sobrevivência das imagens, a memória e o espírito”; e na quarta, “da delimitação e da fixação das imagens, percepção e matéria, alma e corpo”.
O autor expõe um dualismo entre a realidade do espírito e a realidade da matéria. Entende que a matéria é um “conjunto de imagens” e não deve ser vista como idealista ou realista. Para Bergson “é o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro”.
“Há um sistema de imagens que chamo minha percepção do universo, e que se conturba de alto a baixo por leves variações de uma certa imagem privilegiada, meu corpo. Esta imagem ocupa o centro; sobre ela regulam-se todas as outras; a cada um dos seus movimentos tudo muda, como se girássemos um caleidoscópio. Há, por outro lado, as mesmas imagens, mas, relacionadas cada uma a sí mesma, umas certamente influindo sobre as outras, mas de maneira que o efeito permanece sempre proporciona à causa: é o que chamo de universo”.
O autor é enfático: “O cérebro não deve, portanto, ser outra coisa, em nossa opinião, que não uma espécie de central telefônica. Seu papel é efetuar a comunicação ou fazê-la aguardar. Ele não acrescenta nada aquilo que recebe; mas, como todos os órgãos perceptivos lhe enviam seus últimos prolongamentos, e todos os mecanismos motores da medula e do bulbo raquidiano têm ai seus representantes titulares, ele constitui efetivamente um centro, onde a excitação periférica põe-se em contato com este ou aquele mecanismo motor escolhido e não mais imposto”.
Sobre o reconhecimento das imagens o autor diz que há duas formas de memória. “Estudo uma lição e para aprendê-la de cor leio-a primeiramente escandindo cada verso; repito-a em seguida um certo número de vezes. A cada nova leitura efetua-se um progresso; as palavras ligam-se cada vez melhor, acabam por se organizar untas. Neste momento preciso sei minha lição de cor, dizemos que ela torna-se lembrança, que ela se imprimiu na minha memória”.
Conceitua que dessas duas memórias, das quais uma imagina e a outra repete, a segunda pode substituir a primeira e frequentemente até dar a ilusão dela. “Quando o cão acolhe seu dono com festa e latidos alegres, ele o reconhece, sem dúvida nenhuma; mas esse reconhecimento implica a evocação de uma imagem passada e a reaproximação dessa imagem a percepção presente? Não consistirá antes na consciência que toma o animal de uma certa atitude especial adotada por seu corpo, atitude que suas relações familiares com seu dono provocam nele mecanicamente? No próprio animal, vagas imagens do passado ultrapassam talvez a percepção presente”.
Bergson é enfático: “O ato concreto pelo qual reavemos o passado é o reconhecimento. () Não há percepção que não se prolongue em movimento. () A educação dos sentidos consiste precisamente no conjunto das conexões estabelecidas entre a impressão sensorial e o movimento que a utiliza. () À medida que a impressão se repete, a conexão se consolida”.
Sobre a sobrevivência das imagens o autor destaca que “jamais atingiremos o passado se não nos colocarmos nele de saída. Essencialmente virtual o passado não pode ser aprendido por nós como passado a menos que sugamos e adotemos o movimento pelo qual ele se manifesta em imagem presente, emergindo da treva para a luz do dia”.
Para Bergson a “maioria dos psicólogos, ao contrário, vê na lembrança pura apenas uma percepção mais fraca, um conjunto de sensações nascentes, tendo apagado assim, de antemão, toda diferença de natureza entre a sensação e a lembrança, eles são conduzidos pela lógica de sua hipótese a materializar a lembrança e a idealizar a sensação”.
O livro é complexo e o ensaio embora possa ser lido por qualquer leitor de conhecimento superior, mas, ainda assim necessita de releituras em trechos e debates internos permanentes. Bergson conceitua sobre a sobrevivência das imagens, o que acontece na percepção de qualquer ser, que a verdadeira questão é saber como se opera a seleção entre uma infinidade de lembranças que se assemelham todas por um lado a percepção presente. “E porque uma só dentre elas – esta e não aquela – emerge a luz da consciência”.
Diria que o livro de Bergson em linguagem simples aos leitores coloca-o para refletir, pensar e rever muita coisa de sua própria existência. A filosofia, em tese, é sempre assim. E Bergson, por posto, quando da delimitação e da fixação das imagens, comenta que “a duração vivida por nossa consciência, é uma duração de ritmo determinado, bem diferente desse tempo de que fala o físico e que é capaz de armazenar, num intervalo de dado, uma quantidade de dados tão grande que se queira”.
Dei uma ideia resumida do que pensa Bergson sobre a relação do corpo com o espírito. A conclusão final é dele: “O espírito retira da matéria as percepções que serão seu alimento, e as devolve a ela na forma de movimento, em que imprimiu sua liberdade”. Noutras palavras, mais leigas, um não existe sem o outro.