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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA O AVESSO DA PELE, DE JEFERSON TENÓRIO

O autor gaúcho em seu terceiro romance abre as portas para mostrar uma realidade que, embora não seja nova, merece meditações.
13/07/2024 às 09:59
  A linguagem utilizada por Jefferson Tenório em seu livro "O avesso da pele" (Companhia das Letras, 189 páginas capa Alceu Chiesorin Nunes, 1ª edição 2022, R$40,00 nos portais, ganhador do Jabuti 2021) lembra o Nobel de Literatura 2023, Jon Fosse, em "É a Ales" saga de uma mulher em que presente e passado se misturam.

  Em “O Avesso da Pele” o autor nos revela como é a vida de uma família de negros no Rio Grande do Sul o que, para nós do Nordeste do Brasil e em particular da Bahia, onde convivemos e estamos acostumados a proximidade com negros e a exposição de um racismo histórico frequente, pouco sabemos da cultura gaúcha relacionada aos negros. Até o presidente Lula político rodado estranhou nas recentes enchentes do Rio Grande do Sul a quantidade de negros que viu por lá. 

   O autor gaúcho em seu terceiro romance abre as portas para mostrar uma realidade que, embora não seja nova, merece meditações. Sabíamos que as mazelas do racismo e do enfrentamento são questões generalizadas no Brasil, embora distintas de região para região ou com suas peculiaridades e a obra de Jefferson referenda a espacialidade de como isso acontece. Ninguém está salvo de Norte a Sul; de Leste a Oeste.

   Há, em especial, no texto do autor gaúcho o modus como narra a trajetória da família na primeira pessoa com exposições também em segunda pessoa, o que é raro de se encontrar na literatura brasileira. Daí a comparação que fiz com Foss em diálogos muitos assemelhados no pensar. 

  “Tudo ainda ali dentro de você, ainda cambaleando, você tentando superar numa sala com adolescentes desajustados as sobras de um afeto. Você que um dia pensou que aos cinquenta e dois anos saberia lidar com o fim das cousas. Mas a dor não escolhe idade quando quer doer, você pensava. Na parada, enquanto esperava o ônibus, teve vontade de chorar. Mas você se tornou um homem antigo. E homens antigos não choram em paradas de ônibus. Não por macheza ou para provar sua virilidade, mas porque não fica bem um homem antigo chorar em público, você pensava”, escreve o autor.

     O personagem principal do livro é o professor de português Henrique cuja trajetória de vida é exposta de maneira ampla pelo filho narrador. E, quem não está acostumado com esse tipo de texto literário demora um pouco de entender onde deseja chegar o autor, mas, na medida em que expõe a família, o núcleo de amigos e conhecidos ao seu redor, de maneira integral e em apenas quatro capítulos – A pele, O avesso, De volta a São Petesburgo e A barca – o leitor acaba se envolvendo com a história.

    Nesse contexto, muitas questões são abordadas – a negritude e as relações com a sociedade gaúcha, as identidades do homem e da mulher negra, preconceitos, o racismo diário e as implicações psicológicas que isso produz, as rotineiras abordagens policiais sempre mais discriminatórias com os negros (na Bahia é a mesma coisa), o amor, os afetos, quando não a morte por execução como aconteceu com Henrique e é comum na sociedade brasileira. Não é à toa que, com frequência vemos políticos e atores vinculados aos movimentos dos direitos humanos falar no genocídio a jovens negros nos bairros periféricos das grandes cidades, via de regra praticado pelas máquinas policiais dos estados.

   No capítulo intitulado “A pele” comenta o autor: “Às vezes, você se sentia intrigado por ter se casado com minha mãe. Certa vez uma amiga em comum sentenciou sobre a vida de vocês: o que começa mal termina mal. Era um lugar comum. Mas havia nesse clichê toda a verdade desse mundo. Mesmo passados tantos anos você não compreendia como resolvera juntar sua vida com a dela. Desde o início nunca foram compatíveis. Talvez eu esteja simplificando as coisas. A verdade é que vocês não amavam o suficiente para suportarem os seus fantasmas. Vocês eram apenas duas pessoas quebradas. Cada um com seus cacos. O amor com muleta”.

   O professor Henrique na inicial namorava com uma branca e só foi tomar consciência de si e do mundo branco em que estava inserido quando conheceu um colega chamado Oliveira que “usava cabelo black power, barba grande e falava de Shakespeare e Ogum com a mesma intensidade e beleza. A partir daí, sua vida não seria mais a mesma. Mas, enquanto isso (a narrativa é do autor) você e a Juliana participavam de uma mesma visão do mundo. Acreditavam que as raças não existiam e que a humanidade era a única coisa que havia. Na primeira vez que ouviu falar em consciência negra, você não compreendia que a sociedade se importava mais com a sua cor do que com seu caráter”.

   No capitulo 2, “O Avesso”, Pedro (o filho) vai reconstruí a história da família narrando em segunda pessoa a trajetória do pai morto a partir da descoberta de uma pedra sagrada – ocutá – encontrada no apartamento do pai falecido, da relação sexual e afetiva com sua mãe, a negra Marta, as dificuldades de relacionamento, a vida em comum e os contratempos materiais, o sexo.

   “A gente nasce porque tem que nascer. Assim é. E, três dias depois do parto, nós fomos para casa. Você estava confuso com meu nascimento. Na verdade, minha mãe também. Incrível o poder que uma criança tem de encerar e depois iniciar fases na vida dos adultos. Na época em que fui concebido, vocês estavam separados. No entanto, após uma recaída e uma noite de pedidos de desculpa, uma noite de recuperação dos afetos, o estrago foi feito”.

   Jefferson vai expor a complexidade das relações familiares e a formação educacional do filho na medida em que Pedro vai crescendo. “Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo”. 

    São relações familiares complexas, conflitantes. “E era dentro do sexo que vocês tentavam assegurar que os fatores externos não pudessem interferir na vida de vocês. E então sempre que o impulso de largar tudo vinha, você ponderava as coisas. Tentava encontrar qualidades na vida com minha mãe. Certamente além do sexo o fato de ambos serem negros era um dos elementos que pesavam nessa balança. Pois, a princípio a cor da pele não deveria ser um problema. Afinal, quando vocês saíam na rua, isso não era um incômodo. Vocês faziam parte do mesmo grupo racial”. 

    São duas questões distintas da realidade brasileira exposta pelo autor: Henrique mais Juliana (branca) sua segunda namorada; Henrique mais Martha (negra), sua companheira mãe de Pedro, o narrador. No primeiro caso pretendiam que seu relacionamento nada tivesse a ver com a raça. “O afeto transcende a cor da pele, vocês pensavam”. 

   No entanto, rapidamente o racismo adentrou: pela curiosidade das amigas, que queriam saber como era transar com um negão; e por meio das “brincadeiras” e estereótipos levados pelos tios de Juliana. É justamente quando Henrique conhece o professor Oliveira e o alerta bateu na sua cabeça.

Já com Martha, por ela também ser negra, acreditavam que a cor da pele não seria um obstáculo. Martha, no entanto, se sentia menosprezada pelo Movimento Negro, era ciumenta e enfrentava um desnível de conhecimento com Henrique, professor, intelectualizado.

Livro de complexo entendimento, no capitulo “De Volta a São Petesburgo” o autor aborda as relações do professor com a escola e seus alunos. “Você simplesmente não sabe como sobreviveu à escola, primeiro como aluno, depois como professor. Não sabe como aguentou todas aquelas situações constrangedoras e violentas que a escola proporciona a todos que fazem parte dela”.

  Um alerta, um ponto de inflexão, o que é comum de se presenciar na rede pública da escola brasileira: o ensino deficiente, a falta de condições materiais, a violência e a indiferença. 

  “Você mostrava fotos do Carlos Drummond para eles, no livro didático. Ih! Olha lá, pessoal, o professor tá mostrando um velho careca lá na foto. Eles riam queriam de fazer de bobo”.

   Por fim, o último capítulo “A Barca”, o epilogo, em o professor é abordado por uma bliz da policia e como estava pensando na aula, “agora você planejava levar Kafta, Carvantes, James Baldwin, Viginia Wolf, Tini Morisson para eles” não deu importância da ação policial e é executado.

   “Porto Alegre era um lugar que você construiu fora de si. Você nunca esteve dentro dela. E agora caminho pelas mesmas ruas e tenho Ogum em minhas mãos”, diz Pedro.

   Ao leitor caberá muitas interpretações deste livro, um ensaio romanceado com muitas lições a aprender. Uma exposição do racismo estrutural no Brasil e que serve de alerta para mais mudanças além das que já foram realizadas.