Livro aborda a luta dos trabalhadores rurais contra o latifúndio na Chapada Diamantina da Bahia
A Chapada Diamantina da Bahia é cenário de permanente inspiração para produtores de cultura na área literária. Ao longo da história, são destaques os livros de Afrânio Peixoto, Herberto Sales e Walfrido de Moraes e tantos outros autores que navegaram suas penas com sabedoria em romances, contos, poesias e obras de história e economia.
E estão vivos e sempre a cada dia mais lidos "Bugrinha", "Cascalho", "Jagunços e Heróis" só para citar alguns títulos que imortalizaram essa região da Bahia povoada por aventureiros em busca de encontrar a roda da fortuna - ouro e diamantes - jagunços, coronéis, caboclos, seres encantados e muito misticismo a correr entre as águas das cachoeiras, rios e riachos numa das regiões mais belas da Bahia.
E eis que surge um geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA, Itamar Vieira Júnior, baiano de Salvador nascido em 1979, que nos oferece à leitura o belíssimo romance intitulado "Torto Arado" (Editora Todavia, 260 páginas, 2019, 25ª impressão, 2023, R$60,00 na compra pela Internet) ambientado em Utinga e nas brenhas do Rio Santo Antônio, uma história comovente que leva os leitores a se grudarem no livro de corpo e alma, vivenciando a narrativa bem delineada do autor.
A princípio imagina-se ser uma história de enredo batido e já explorado por outros escritores - a luta pela sobrevivência no cultivo da terra e a exploração dos latifundiários - o que poderia até desencorajar a leitura, porém, o livro é tão bom, o enredo é tão emocionante e convincente com mulheres protagonizando as personagens principais, um patriarca feiticeiro e trabalhador do eito - Zeca Chapéu Grande - submisso, conformado com a vida que leva sem contestar o patrão, que os leitores não param de se surpreenderem e seguem na leitura até o fim.
Zeca é um trabalhador à moda antiga que, ao mesmo tempo, representa um guia espiritual para a comunidade rural em que vive com a família - léguas de terras da Água Negra - o qual cria os seus e protege os das redondezas amparado em força da crença do Jarê, o candomblé de caboclo da Chapada.
Creio que, neste ponto e no fato de que os descendentes de Zeca, uma das suas filhas e genro, e outras pessoas dessa comunidade vão se rebelar engajando-se em movimentos sociais e políticos que se assemelham aos atuais existentes no Brasil, dando conta de que eles sim é que são os verdadeiros donos das terras porque laboram nela, criam suas famílias, são apegados ao extremo a raiz ruralista ao ponto de não admitir o fechamento de um cemitério (Viração) nos arredores dessas terras, são os diferenciais da obra de Itamar.
Ou seja, o alerta é dado de que essas pessoas são os frutos da terra e a terra voltarão no mesmo local em que geram riqueza e, assim sendo, essa riqueza não pode ser direcionada somente aos latifundiários e sim a eles (os rurais) não apenas com uma cota para sobrevivência sem direito a educação, moradia decente, cultura e lazer. A riqueza para os trabalhadores tem que ser plena com educação, saúde, casa de alvenaria para morar, lazer e bens culturais.
Itamar, portanto, tem um identificador que não vimos em outras obras da Chapada, mais atualizado e antenado com os tempos de rebeldia, do enfrentamento aos donos das terras, não com armas e sim com a consciência, o discurso, a organização, um direito à conquista com a força do trabalho dando um não a exploração consentida, do tempo dos seus pais e/ou antepassados ainda mais distantes.
Daí, creio, vem o título do romance "Torto Arado" significando entre aspas para a compreensão dos leitores de que os representantes da comunidade da "Água Negra" exigiam algo mais promissor em suas vidas além do manejo de enxadas, redes de pesca e arados mambembes movidos pela força dos homens e dos bois.
Vale também observar que Itamar adicionou a esse caldo de cultura já bem explorado na literatura - a terra e a exploração humana - um enredo sutil, apaixonante, extremamente delicado na abordagem do texto desde quando as irmãs Belonisa e Bibiana, filhas de Zeca Chapéu Grande e Salustiana Nicolau (Salu) descobrem uma misteriosa faca na mala guardada sob a cama da vovó Donana, objeto que ao ser manuseado pelas crianças uma delas corta a língua, literal, a Bibiana, e fica sem o poder da voz e da fala, passa por inúmeros problemas psicológicos mas, mesmo assim, não se amofina, não se rende ao infortúnio, e segue apegada a família e a irmã que mudará de vida e pensamentos.
Esse ponto do livro é sensacional uma vez que o autor mantém o mistério do poder dessa faca até o final e os leitores ficam curiosos em saber que poder era esse, e até ansiosos que o autor a relacione de forma mais direta no romance. A faca permanece como um elo de união misterioso até o fim.
O autor, no entanto, concentra sua trama na questão social das famílias e tece um enredo onde se envolvem a infância, a juventude, os ruralistas adultos, a consciência coletiva (a reivindicação da necessidade de uma escola na Água Negra), os casamentos, ajuntamentos, dramas familiares de vizinhos, partos, proteção espiritual, a força dos encantados caboclos e Santa Rita Pescadeira (típico da região da Chapada), sedução, crime politizado, rebeldia, morte e transformação.
Nesse ponto o livro é perfeito e por isso mesmo venceu o Jabuti, o Oceanos e o Leya e faz tanto sucesso entre os leitores. É raro vê todo esse emaranhado num só conteúdo, bem estruturado, com uma linguagem de fácil percepção, diálogos com termos regionalizados beme, dramas sociais bem estabelecidos, um contraste do seguimento da vida das duas irmãs - Belonisia e Bibiana - cada um em seu mundo, aliás, diferenciados, uma vez que Belonísia deixa "Água Negra" para morar noutra região (depois, volta) enquanto Bibiana segue apega à terra, aos antigos costumes, mas, ainda assim, ambas interligadas pelo afeto e por laços familiares.
E a faca entra nesse ponto como uma espécie de traço de união, fio condutor de ambas, assim como os encantados e os personagens desde Maria Cabocla (mística) ao capataz da família Peixoto o latifundiário explorador, por sinal, muito bem posto no livro, sem uma cara, sem uma identidade relevante. "Torto Arado" é um excelente livro.