Proust navega a sua pena com múltiplas interpretações e sentimentos psicológicos, ora apreensivo; ora relaxado ou deixando que os acontecimentos se sucedessem s
Já comentamos neste site como é cansativa a leitura da obra de Marcel Proust única e posta no denso "Em Busca do Tempo Perdido" que o autor dividiu em 7 volumes e revelou a trajetória da sociedade francesa de sua época (o autor nasceu em 1871 e faleceu em 1922) e as mudanças que estavam acontecendo na aristocracia, tanto do ponto de vista da decadência financeira das famílias consideradas nobres, mas que ainda tentavam ao menos na aparência e no glamour dos salões ostentarem riqueza e poder; quanto no comportamento sexual com as revelações dos invertidos e invertidas, assim chamados os gays e lésbicas daquela época.
Lembrando aos leitores e abnegadas leitoras que, Proust ao lado de André Gidet, foi um dos pioneiros na literatura a expor de público essas aventuras invertidas na efervescente Paris, até então temas e fofocas tratados nos bastidores, nas alcovas e nos salões, o que já comentamos com mais espaço no volume "Sodoma e Gomorra".
Hoje, no entanto, vamos falar do volume que o autor intitulou "A Prisioneira", o 5º da série (publicação da Editora Nova Fronteira, 2016, 330 páginas em corpo 8, tradução de Fernando Py) que o tradutor considera o "ciclo de Albertine", personagem amante que tem uma relevância extraordinária na trama, Proust complementando esse ciclo com os derradeiros tinteiros do autor em "A Fugitiva" e o "Tempo Recuperado".
São também consideradas como as obras póstumas de Proust, só publicadas após a sua morte, já em 1927 quando seus restos mortais descansavam em Père Lachaise, o cemitério parisiense mais famoso da cidade, e que PY revela que ele não teria deixado uma versão definitiva, porém, com uma estruturação acabada, o que já foi comparada a "uma tragédia clássica".
Ora, dizemos nós, em "A Prisioneira" o autor decide expor a morte de alguns personagens dos capítulos anteriores, a principal delas de Charles Swann, e toda a ciumeira que tinha de Albertine, a qual, embora vivendo prisioneira em sua residência parisiense, prisioneira entendendo-se que viviam sob o mesmo teto e em cômodos separados obedecendo a determinados códigos e se relacionando afetivamente, porém, nada arrebatador ou de um amor puro, único e perfeito; cada qual a seu modo, mais ela do que ele, a bem dizer dando as suas escapulidas para ter outros casos sexuais e amorosos com amigas e amigos, o que deixava-o perplexo, mas, nada ao ponto de cometer um feminicídio.
Portanto, seria, assim, uma prisioneira no sentido figurado do termo uma vez que Albertine podia circular livremente pela casa e pelos círculos mundanos parisienses, mas, ainda assim, vivia sob os seus domínios, o espaço que a acolhia como residência. E, claro, tinha limitações nesse espaço que, não sendo seu e sim de outrem, obedecia a determinadas regras não necessariamente impostas pelo dono do espaço, porém, seguidas em comum acordo e vigilância. O que também não a deixava à vontade só realizando seus devaneios noutros locais.
É exatamente nesse contexto que Proust navega a sua pena com múltiplas interpretações e sentimentos psicológicos, ora apreensivo; ora relaxado ou deixando que os acontecimentos se sucedessem sem a sua repreensão ou a postura de expulsá-la de sua casa, tudo isso numa Paris do início do século XX já sob os efeitos da I Grande Guerra Mundial (1914/1918) e que mexeu muito com a cultura europeia.
Diz o autor nas observações inicias: "Eu achava esquisito, chocante, que uma moça morasse sozinha comigo". E, logo nesse quase preâmbulo, Proust coloca de forma mordaz o que poderia acontecer com dessemelhante decisão ao citar que "no primeiro dia, ao deixar Balbec, quando me vira tão infeliz e se inquietar-me por deixar-me sozinho, talvez minha mãe se sentisse feliz ao saber que Albertine viajara conosco e ao ver que, com nossas malas (junto às quais eu passara a noite chorando no hotel de Balbec), tinham posto no 'tortinho' as de Albertine, estreitas e pretas, que me pareciam ter a forma de ataúdes, sem que soubesse se iam trazer vida ou morte à minha casa".
Veja, pois, quão complexo é o entendimento de Proust com suas colocações que deixam os leitores a analisar o seu comportamento repleto de dúvidas e ao mesmo tempo esperançoso de um amanhã agradável, sereno, ao lado da pessoa que se derramara em elogios e ao mesmo tempo põe calços e dúvidas no seu comportamento e no dele próprio em aceitá-la morando consigo em Paris, de cara, nominando suas malas como "ataúdes".
E, mais intrigante ainda, envolve a sua mãe, a quem, supostamente, deve obediência e favores. Na vida real, Proust era um "dandi" um mimado intelectual ainda que insubmisso, que se beneficiou da condição social da sua família, com alto padrão, e com quem vivia e frequentava os salões dourados da capital francesa. Portanto, muito do que escreveu tem seu lado vivencial.
Em "A Prisioneira" cita sobre a sua relação com Albertine: "Mamãe preferia parecer aprovar uma escolha da qual sentia não poder demover-me. Mas todos os que a viam por essa época disseram-me que, a dor de ter perdido a mãe, acrescentava um ar de constante preocupação()...mas não chegava a tomar qualquer decisão, por medo de me 'influenciar' num mau sentido e de estragar aquilo que julgava ser a minha felicidade".
Proust chega a ser murrinha diante dessa relação com Albertine citando-a uma vez ou várias vezes em todas as páginas dando sinais, em determinados trechos, de paranoia ou algo parecido: "Eu escondia que ela morava comigo, e até que a recebia em casa, tamanho era o medo de que um dos meus amigos se enamorasse dela, fosse esperá-la fora, ou que, no instante de um encontro na antecâmara ou no corredor, ela pudesse fazer um sinal e marcar um encontro".
"O que me fazia tantas vezes permanecer deitado era uma criatura (não Albertine, não uma mulher que eu amava) uma criatura com uma força sobre mim do que um ser amado, era, transmigrada em mim, despótica a ponto de de fazer calar às vezes as minhas ciumentas suspeitas, ou pelo menos ir verificar se eram fundadas ou não, era a minha tia Léonie", comenta num dos trechos com as intermináveis dúvidas.
E segue assim até o final deixando que o leitor tire suas próprias conclusões, o que é, também, extremamente difícil para quem ler, uma vez que há uma quantidade imensa de observações ou como Proust enumera: "quando penso em Albertine não sei dizer o quanto a sua vida era recoberta de desejos alternados, fugidios, muitas vezes contraditórios". E, mais ainda, como "Em Busca do Tempo Perdido" é uma obra sequencial, ou seja, é preciso ter os primeiros volumes para entender os subsequentes" não dá para, isoladamente, navegar pelas páginas de "A Prisioneira".
O leitor, se assim o fizer, ficará perdido ou prisioneiro em si mesmo.