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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA "OS IRMÃOS KARAMÁZOVI",DE DOSTOIÉVSKI

Este livro é considerado um dos melhores romances da história da literatura ocidental
12/05/2023 às 09:13
    
  Como meus comentários neste BJÁ sobre literatura não são dedicados aos intelectuais, nem muito menos aos revolucionários do Largo da Dinha que tudo sabem, sempre que vamos abordar um autor russo convém antes de falar da sua obra, dar pinceladas na personalidade em foco. Apresento, portanto, aos nossos leitores, Fiódor Dostoiévki (1821/1881), escritor, filósofo e jornalista da época do império tzarista comandado por Nicolai I e que tem uma vasta obra literária, ora com o niilismo (Os Demônios); ora, com o realismo fantástico (Crime e Castigo) com um trabalho denso que só foi interrompido na prisão siberiana da Omsk, local em que teve os primeiros ataques epilépticos que o perseguiram para o resto da vida, e incorporou-os a alguns dos seus personagens.

  Vamos comentar, por posto, sua obra prima intitulada "Os Irmãos Kamarazovi" (Edição antiga da Editora Abril, tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes, 1971, 534 páginas no corpo 7 - há novas publicações desta obra por várias editoras brasileiras à venda na internet R$84,80 livro em capa dura) escrita quando o autor já estava se aproximando do final da vida - esta obra foi concluída em 1880 e ele morreu em 1881 - considerado por alguns críticos como um romance policial, denso, complexo, onde o autor aprimorou a existência dos seus personagens envolvendo questões religiosas, morais, éticas, psicológicas, filosóficas cristãs, num texto que oferece aos leitores múltiplas interpretações, inclusive e sobretudo, sobre a existência de Deus e a sua força perante os homens.

  Sigmund Freud (1856/1939), o pai da psicanálise e que circulava noutro ambiente na Europa letrada entre a Áustria e Londres, embora contemporâneo do autor russo com obra no campo da psicologia só debatida a partir do início do século XX, quando Dostoiévisk já tinha 20 anos de morto, assegurou ao ler "Os Irmãos Kamarazovi" que era a "maior realização literária da história da humanidade". Evidente que falava para o círculo dos intelectuais e literatos da Europa e também dos Estados Unidos, uma vez que a psicologia e a filosofia se concentravam com maiores destaques na Alemanha e na França com círculo editorial que se expandia até Londres, Berlim e New York.

  Freud, portanto, aliado a opinião também de Friedrich Nietzche (1844/1900) o filósofo alemão extremamente influente e que, até os dias atuais, tem enorme força influenciadora junto à opinião pública, e que considerava este título de Dostoiéviski como obra prima, era outro nome de peso a garantir que seria importante ler o autor russo. Ler os russos do século XIX - Tolstói, Turguêniev, Gogol, Gradoski, Pushkin, Belinsk e outros - é uma obrigatoriedade para os amantes da literatura, pois, influenciados pelos ocidentais acabaram também por terem uma enorme influência e seguidores no lado Ocidental (a Europa, EUA, Brasil, etc).

  E o que nos revela o autor em "Os Irmãos Kamarazovi" (grafa-se também Kamarazov) para que o livro obtivesse tanto sucesso e ser lido até hoje mais de 140 anos depois de escrito? 

A trama, a súcia, a sutileza e o estilo que Dostoiévshi utiliza, atemporal com narrativas recheadas de filosofia e de psicologia para descrever um parricídio (assassinato de um pai pelo filho), o amor de pai assassinado e do filho supostamente o assassino apaixonados por uma mesma mulher, uma cortesã bela, sedutora e ativa, dois outros irmãos de vida casta (um deles, nem tanto, paranoico) que atuam como conselheiros e mediadores do conflito, isso se passando numa Rússia imperial bem colocada no livro com sua forte cultura, o amor à Rússia, as mulheres, aos costumes, a religião, enfim, um caldeirão de sociedade russa da época.

  Daí que o romance é considerado no estilo policial uma vez que se trata de um crime que é levado a julgamento na corte jurídica e, nesse cenário, atuam advogados, promotores, juiz, jurados, testemunhas, a plateia e a repercussão nacional envolvendo a mídia e outros, mas entendem os críticos e a intelectualidade que se trata mais de um romance filosófico e/ou romance psiciológico do que um romance policial, puramente. 

  O pai assassinado (Fiódor Pávlovitch Karamázov) era um nobre empobrecido, beberrão, mulherengo, insensível aos filhos no acompanhamento de sua educação e formação moral e, cada um dos três - Dmitri (o assassino), Ivan e Aliócha (religioso) têm personalidades distintas; e entre eles a personagem mulher (Grúchenka), ardilosa, sádica, vai alimentando a paixão de pai (Fiódor) e do filho (Dmitri) sem nunca decidir-se por um e outro exercendo um papel de amante lasciva, gananciosa e, ao mesmo tempo, terna, o que leva o filho (Dmitri popularizado com Mitia) a prometer por diversas vezes (junto a interlocutores) matar o pai, possuído por ciúme e cólera. E o mata, ou supostamente, o mata, pois, na trama, jura inocência perante os irmãos e no momento do júri.

  E os leitores, no fundo, têm até compaixão de Dmitri, ao menos em determinados momentos, acreditando que, de fato ele não matou o pai e o crime teria sido praticado por um lacaio e/ou um mordomo de cabeceira que sabia todos os segredos do velho e era seu conselheiro e amigo fraterno. 

Diria que, no plano da investigação policial ou da narrativa do autor esta é a melhor parte do livro, Dostoiévski colocando o leitor para pensar, para refletir e até tomar uma posição na defesa do acusado ou na sua inocência. 

  E, até o final do livro, o autor deixa esse enredo em suspense, Mitia condenado a 20 anos de prisão, aparentemente resignado, um irmão praticamente louco (Ivan) acreditando piamente em sua inocência; o outro, Aliócha, sereno, conformado como mediador do conflito na família e junto a Grúchenka; o mordomo Smierdiakóv (também possível filho bastardo do morto) suicida, um seminarista ateu (Raktin), um advogado de defesa famoso vindo de Moscou para o júri, mujiques entre os jurados, enfim, um caleidoscópio da sociedade russa em cena envolvendo, também, dinheiro (rublos), amor, ciúme e o desafio na crença de Deus, as tentações do diabo e assim por diante. Aliócha, o filho terno, passa por mudanças profundas psicológicas, pois, deixa a vida monástica, mas, leva consigo e para sempre os ensinamentos do seu guia espiritual (abade Zósima).

  Há várias definições sobre o estilo de Dostoiévski e não vamos entrar nesse tema até por que não temos conhecimentos para essa análise. O importante destacar na obra que analisamos é que o autor não é objetivo nos seus textos e vai misturando as questões históricas do seu pais, as teológicas e as morais dos seus personagens, a crença em Deus e suas dúvidas a ponto de um dos irmãos Ivan dizer que, "se Deus não existe tudo é permitido", o autor, em si, religioso cristão ortodoxo e vai deixando suas marcas no livro.

  Numa das passagens, Ivan (já quase alucinado) recebe a visita do diabo e trava um extenso diálogo, entre os quais, diz: - Tu também não crês em Deus? - disse Ivan com um sorriso cheio de ódio. - Como dizer, se fala seriamente (responde o demo)... - Deus existe ou não existe? - insistiu Ivan encolerizado. - Ah! é sério, então? Meu caro. Deus é-me testemunha de não sei de nada, não posso dizer melhor. - Não, tu não existe, tu és eu mesmo e nada mais! Não passas de uma quimera! - Se queres tenho a mesma filosofia que tu.

 Penso, logo existe (escrito em francês Je pense, donc je suis) eis o que é certo; quanto ao resto, quanto a todos esses mundos. Deus e o próprio Satã, tudo isso não me é provado. Têm eles uma existência própria, ou serão apenas uma emanação de mim, o desenvolvimento sucessivo de meu "eu", que existe temporal e pessoalmente...mas detenho-me, pois tenho a impressão de que vais bater-me".

 Bem, paro por aqui, e deixo aos leitores que aproveitem o máximo desta obra monumental.